12 de maio de 2011 | N° 16698
PAULO SANT’ANA
Bebê esquecido
Não me sai da cabeça o caso do pai que esqueceu o filho recém-nascido no seu carro e quando o reencontrou, cinco horas depois, o bebê estava morto. Morreu de fome ou talvez asfixiado.
Foi em Novo Hamburgo e faz 10 dias.
Esqueceu o seu bebê como se esquece um guarda-chuva, um celular.
Talvez tenha esquecido o seu bebê porque ele nascera havia tão pouco tempo, não o incorporara ainda aos seus objetos cotidianos.
Esqueceu como se esquece de pagar uma conta, com a diferença de que se pode pagar a conta no mês seguinte.
Há patrão que se esquece do empregado. E há empregado que se esquece de ir trabalhar.
Há noivos que se esquecem, na igreja, no dia do casamento, das alianças.
Há outros raros que sabem onde estão as alianças, mas esquecem de se casar.
Está bem esquecer as alianças, esquecer de casar-se, esquecer de enviuvar, mas esquecer o filho dentro do carro é demais.
Eu, por exemplo, há muito tempo esqueci de viver, exatamente porque não consigo esquecer que vou morrer.
Minha encrenca reside no fato assustador de que esqueço de tudo, menos de sofrer.
Quando se sofre, esquece-se de ser feliz? Pensando bem, é quando se sofre que a gente então não esquece que já foi feliz.
É possível, sim, esquecer um bebê dentro do carro.
Há gente que se esquece até de uma família inteira dentro de uma cidade.
Bem-aventurados os que se esquecem de se vingar.
Malditos sejam os que não esquecem de pronunciar uma ofensa grave.
E me esqueci de que era velho, e por isso me surpreendi com a doença.
Há médicos e juízes que se demolem interiormente porque os governos se esqueceram de construir hospitais e presídios para seus doentes e presos.
De mim, por exemplo, sem dúvida, esqueceram. Se não tivessem esquecido, pelo menos telefonariam.
Quase que me esqueço dos presidiários amontoados como baratas no meio das baratas.
Só teimo em não esquecer os que me esqueceram.
E, quanto ao bebê que morreu no carro esquecido pelo pai, bem, esquece.
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