sábado, 21 de maio de 2011



21 de maio de 2011 | N° 16706
PAULO SANT’ANA

Guri irresponsável

Quando eu era guri e soltava pandorgas, nem passava pela minha cabeça o que seria de mim, o que iria me acontecer neste mistério fantástico da vida.

Não tinha medo. Eu apenas vivia, extasiado pela vida, sem me importar com o sentido de viver.

Quando eu era guri e soltava pandorgas, não sabia que a vida se dividia entre sofrimentos e venturas.

Talvez pensasse até que a vida se resumisse só à infância, que a gente passasse aqui como um anjo, flanando, sem os percalços sérios das vicissitudes.

Quando eu era menino e soltava pandorgas, não me importava andar só. Até acho que me empenhava em estar só, isto é, não conseguia compreender o que entenderia mais tarde: que a solidão tem um punhal afiado que fere fundo.

Nada disso. Eu só queria soltar pandorgas e jogar bola de gude.

Eu só queria derrubar com uma vara de bambu as cachopas de marimbondos que se dependuravam nos beirais das casas, desfolhando depois aquele papel machê à procura de mel.

Quando eu era guri e soltava pandorgas, todas as manhãs quando eu me acordava, saltava da cama preparado para as surpresas da vida, não sabia que haveria competição, sequer cogitava da luta pela vida, pensava que tudo era um encanto e não haveria pesadelos.

Desfrutava da saúde como um bem perene, não passava pela minha cabeça que um dia a saúde enfraquece e a gente tromba com seu tratamento.

Quando eu era menino e soltava pandorgas e jogava bolinha de gude, não tinha ideia de que eu integrava uma família e dia haveria em que eu iria formar a minha própria família.

Quando eu era menino e jogava taco com casinha derrubada, era um tempo bom, sem apreensões, que só se tisnou a partir do dia em que comecei a me preocupar com o futuro, com a carreira, com o orçamento, com a previdência.

Eu até penso hoje que a gente tem boas recordações da infância porque quando se é criança não se tem nenhuma responsabilidade.

O homem deixa um pouco de ser feliz quando se torna responsável. É aí que ele percebe que tem de prestar contas.

Quando menino, a gente não tem encargos, a vida é grátis e nem se imagina que um dia ela vai apresentar as prestações para serem pagas.

Vê-se agora que seria bom voltar àquele tempo de criança quando a gente só brincava.

E, se por acaso se precisasse de alguma coisa, ela nos era alcançada.

Hoje, não, quando a gente precisa de alguma coisa, é a gente que tem de dar um jeito.

E é muito difícil dar um jeito na solidão.

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