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sábado, 7 de maio de 2011
08 de maio de 2011 | N° 16694AlertaVoltar para a edição de hoje
DAVID COIMBRA
O sonho e o cabaré
Eu gostava de sonho-bocha. Digo gostava porque não sei mais quem faz um bom sonho-bocha em lugar algum desta cidade que um dia foi doce. As mães de hoje? Cristo!, elas não são capazes de preparar o arroz vulgar, imagine uma iguaria sutil como o sonho-bocha.
Refiro-me ao autêntico sonho-bocha, que não seja oleoso demais nem massudo demais, que seja recheado com bastante creme, de preferência baunilha. Mas pode ser Mumu.
Nos anos 80 eu comia sonho-bocha praticamente todas as tardes, na lanchonete da Dona Maria. Ficava ali perto do Senac, no Centro. Eu e o Sérgio Lüdtke trabalhávamos na Sulina. Lá pelas quatro horas, saíamos caminhando com a mão no bolso, chegávamos à pequena lanchonete da Dona Maria, não maior do que uma garagem. Sentávamos ao balcão e pedíamos:
– Café com leite e sonho, Dona Maria.
Lembro do cheiro daquele sonho, da textura daquele sonho e, sobretudo, do sabor suave daquele sonho.
Hoje, você vai a uma padaria, e o que é que a padaria tem? Quiche. Folhados. Por favor! Onde estão os baurus olorosos, os sanduíches frescos, o pão quente com a manteiga derretendo em cima? Onde estão os sonhos? O sonho acabou.
Por que falo do sonho? Óbvio: por causa do Gre-Nal.
É que o Alcindo adorava sonho-bocha, em especial sonhos-bocha preparados por uma Dona Maria que não devia ser a minha, o Brasil é país de Donas Marias.
Não apenas de sonhos-bocha gostava o Alcindo, ressalte-se: ele comia de tudo, e comia bem. Seu problema não era a bebida, nem as mulheres, nem o jogo. Seu problema é que tinha facilidade em engordar. Então, na semana do Gre-Nal, o técnico do Grêmio, Carlos Froner, trancava o Alcindo na concentração do Olímpico. Ele passava sete dias recluso, comendo tão-somente o que lhe servia a cozinheira do clube, a tal Dona Maria.
Só que Dona Maria gostava muito do Alcindo e, sabedora da adoração que ele nutria pelo sonho-bocha, sobretudo do sonho-bocha que ela fazia, então Dona Maria não resistia: cozinhava fornadas e fornadas de sonho-bocha. Alcindo comia-os de manhã, com café preto; à tarde, depois do treino; e à noite, na sobremesa do jantar. Domingo, o Alcindo era o próprio sonho-bocha de camisa tricolor. E, mesmo assim, marcava gol em Gre-Nal.
O Ávila, esse sim, o problema dele era a bebida, eram as mulheres. O Ávila era um negro alto, forte e espadaúdo que jogava de centromédio no grande Rolo Compressor do Inter dos anos 40.
Os dirigentes do Inter bem que tentavam confiná-lo em algum quarto sombrio da concentração, na semana do Gre-Nal. Não adiantava, o Ávila sempre fugia, esgueirava-se a pé do Menino Deus, onde ficava o Estádio dos Eucaliptos, até as entranhas da Azenha, mais especificamente a famigerada Rua Cabo Rocha.
A Cabo Rocha era a rua do baixo meretrício da cidade. Esticava-se da Azenha até a hoje Rua Zero Hora, aqui ao lado da Redação. Ainda há, na região, casinhas remanescentes daquele tempo do Ávila. Eram casinhas precárias, de madeira, parede com parede. As prostitutas enfiavam-se em seus vestidos curtos e encostavam o ombro no batente da porta aberta. Olhavam com malícia convidativa para os transeuntes. O homem passava devagar e as examinava.
De repente, escolhia uma namorada de 15 minutos, negociava o preço e entrava. A coisa toda acontecia bem depressa, que a mulher precisava atender mais clientes. Depois que o freguês saía, ela se lavava numa bacia d’água que havia sobre a mesa e voltava para a porta menos pobre e mais cansada.
Existiam também outros estabelecimentos na Cabo Rocha, notoriamente bares e cabarés. O preferido de Ávila era o Cabaré do Galo. Lá ele atravessava as madrugadas bebendo com os amigos de má fama e se repoltreando com as marafonas de fama nenhuma.
Os dirigentes do Inter, quando davam pela falta do Ávila na concentração, já sabiam onde encontrá-lo. Corriam para o Cabaré do Galo e resgatavam-no dos braços lisos de alguma dama que dizia amá-lo, mas exigia soldo. Ministravam-lhe, então, uma dose de sopa reconstituinte e o enfiavam sob os cobertores. O Ávila ressonava por algumas horas, acordava, calçava as chuteiras e entrava em campo para ser o melhor da partida.
Em 1956, a prefeitura determinou a “limpeza” da Cabo Rocha, tarefa que a polícia se encarregou de executar a enérgicos golpes de cassetete. As mulheres de vida fácil e as boates escusas mudaram-se para a Voluntários da Pátria e arredores, onde o submundo da noite continua suas atividades.
A Cabo Rocha mudou até de nome, agora é Freitas de Castro. Sonho-bocha, pode procurar que você não vai encontrar. Alcindo e Ávila não jogam mais, agora há outros personagens envergando a camisa tricolor e a colorada. Tudo é diferente, portanto. Mas o Gre-Nal é o mesmo. O Gre-Nal não muda jamais.
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