sexta-feira, 20 de maio de 2011



20 de maio de 2011 | N° 16705
DAVID COIMBRA


Tempos estranhos

Ao observar o meu filhinho, concluí que Kant estava certo. Immanuel Kant foi um filósofo que viveu a vida inteira em Konnigsberg. Concebeu uma obra portentosa, difícil, cada página é uma dor, mas, depois que você consegue compreendê-la, o mundo se ilumina. Vou tentar fazer um resumo grosseiro.

Kant dizia que temos conhecimento a priori. Quer dizer: sabemos de certas coisas ANTES de receber informações sobre elas. Um conhecimento que estaciona do lado de fora da área intelectual. Por exemplo: você tem nas mãos uma barra de chocolate. De imediato, o seu cérebro começa a receber informações a respeito. A forma, a cor, o cheiro, a textura, o sabor.

Dezenas de sensações. Talvez centenas. Mas você não leva todas em consideração. Algumas você rejeita; outras, qualifica como mais ou menos importantes. Um processo sofisticado. Tudo isso em menos de um segundo. Como você decidiu o que seria relevante? Onde você adquiriu essa escala de valores? Aí está: em lugar algum. Você JÁ SABIA disso.

Você faz isso todos os dias, o dia todo. Agora mesmo você está sendo acossado por um milheiro de sensações.

O encosto da cadeira na sua espinha dorsal, o tecido da sua roupa, o tique-taque do relógio de parede, o rosnado do carro que passa lá fora, o vagido da criança no apartamento contíguo, a temperatura da sala, as cores e formas de tudo o que o cerca, o odor do café sobre a mesa e do feijão que ferve na cozinha, as atividades internas do pulsar do seu coração, dos ácidos que dissolvem alimento no seu estômago, do seu pulmão que se enche de ar e até a pressão atmosférica.

A maioria das sensações você decide ignorar. Outras você assimila. Não se trata de um processo intelectual. É algo que você SABE fazer a priori.

Pois meu filhinho sabe coisas a priori. Percebo que ele tem noção exata de como se comportar diante de situações sobre as quais jamais teve informação. A sensibilidade vem antes do raciocínio. As pessoas não são só massa moldada pelos acontecimentos e pelo meio ambiente. Há algo mais envolvido no processo, algo mais sutil, mais requintado e mais sensível: o espírito humano.

Eu aqui, dois séculos depois de Kant, ousaria afirmar que esse espírito não se manifesta só no indivíduo. Existe também um espírito da sociedade, um entendimento coletivo que se manifesta antes de que sejam tecidas considerações intelectuais a respeito. Ninguém escreveu sobre aquilo, ninguém formulou tese alguma, mas aquele sentimento permeia a comunidade.

Agora, por exemplo, os tempos são de falsa liberdade individual. Homossexuais fazem beijaço no Centro, o racismo é punido por lei, o machismo é censurado. Tudo isso é positivo. Mas não significa que sejam expressões de um mundo livre.

Porque, simultaneamente, o comportamento das pessoas está sob severo julgamento. Nunca as motivações internas sofreram tanta vigilância externa. Uma vigilância que tem sido exercida antes da teoria. Antes da regulamentação. A priori. Tempos estranhos. E mais estranhos serão os que meu filho haverá de enfrentar.

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