sábado, 28 de maio de 2011



29 de maio de 2011 | N° 16714
VERISSIMO


Pés em Roma

Os pés da Virgem de Caravaggio estavam errados, os dedões apontavam para onde não deviam

Por um breve momento, quase que entrei para a história da arte com uma descoberta alucinante. Estávamos diante da Madonna di Loreto, também conhecida como Madonna dos Peregrinos, de Caravaggio, na igreja de SantAgostino, em Roma. A Virgem com o menino no colo sendo adorada por um casal de peregrinos.

A Virgem de pé, os peregrinos ajoelhados à sua frente. Caravaggio usava gente do povo nos seus quadros religiosos e, embora não se veja seus rostos, sente-se a devoção simples do casal mal-vestido na sua atitude reverencial diante da visão.

Dizem que essa pintura de Caravaggio foi importante na iconização individual da Virgem à parte do seu papel no drama de Cristo, uma novidade na arte cristã. A própria Virgem do quadro é de uma simplicidade tocante. Não fosse o halo sobre sua cabeça e ela seria apenas uma jovem mulher descalça que passa com o filho no colo.

Mas havia alguma coisa errada no quadro. Os pés, descobri. Os pés da Virgem estavam errados. Os dedões da Virgem apontavam para onde não deviam. Como não existia, que eu soubesse, nenhuma referência a essa distração do pintor nos estudos sobre a sua obra, deduzi que eu era o primeiro a ver aquilo. Quatrocentos anos depois, eu flagrara um erro do Caravaggio!

Seria possível? Durante 400 anos ninguém notara que o dedão do pé direito da Madonna di Loreto era um equivoco anatômico? Se eu era realmente o primeiro a notar o fato, poderia começar a pensar na notoriedade que a descoberta me traria. Talvez publicasse algo a respeito, uma releitura da obra de Caravaggio, que – sendo sabidamente um mestre em anatomia – teria errado os pés da Virgem deliberadamente, para deixar uma mensagem.

Ou então se enganara mesmo. Acontece com qualquer gênio. Um dia ruim, uma ressaca (Caravaggio bebia muito) e quem se importa de que lado é o dedão? De qualquer forma, toda a história da arte pós-renascentista teria que ser revista. Eu daria palestras.

Eu... Mas interrompi meu próprio delírio. Espera um pouquinho. O dedão do pé direito da Virgem está trocado, apontando para fora quando deveria estar apontando para dentro, porque não é o pé direito da Virgem. É o pé esquerdo.

A Virgem era uma mulher que passava, portanto colocava uma perna na frente da outra. Cruzava as pernas. O pé que aparece sob sua túnica do lado direito é o pé esquerdo. Tudo explicado, pensei, decepcionado. Recolhi meu delírio e minha pretensão de corrigir 400 anos de má observação em alguns minutos, e ainda por cima com um olhar apressado de turista. Caravaggio estava certo. Se, claro, a sua Virgem está mesmo com as pernas cruzadas.

Na verdade, os pés que dominam o quadro não são os da Virgem, são os do peregrino, em primeiro plano. As solas sujas dos pés de um homem do povo ajoelhado. Foi a sujeira destes pés que a Igreja achou desrespeitosa e por isso não pagou o quadro que tinha encomendado a Caravaggio.

A maior parte dos quadros de Caravaggio foi comissionada pela Igreja, mas as solas sujas não foram aceitas. Não sei quanto tempo demorou para a objeção ser suspensa e o quadro acabar numa capela lateral da Igreja de Sant’Agostino, mas as solas sujas finalmente estão lá.

Caravaggio talvez não quisesse dizer nada com as pernas cruzadas ou não cruzadas da Virgem, mas, no caso das solas dos peregrinos, a Igreja custou mas entendeu a mensagem.

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