sábado, 18 de setembro de 2010


Martha Mendonça, com Cristiane Segatto

R$ 520,00 por uma vida

A história absurda do menino de 14 anos que morreu porque as autoridades se recusaram – mesmo com ordem da Justiça – a fornecer um aparelho simples para ajudá-lo a respirar

Não há resposta fácil. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal organizou três dias de audiências públicas e ouviu representantes do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais, médicos e associações de pacientes para coletar informações que podem guiar os juízes em processos que cheguem à Suprema Corte.

Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil vive uma “epidemia” de ações judiciais. Ela é sintoma de dois problemas. O primeiro: como a Constituição diz que saúde é dever do Estado, abre caminho para qualquer pedido: drogas caríssimas, experimentais, que só existem no exterior (e de eficácia duvidosa), fraldas (quando um dos sintomas da doença é diarreia), iogurtes (quando a dieta é recomendada pelo médico)... O segundo problema: a lista de medicamentos oferecidos no SUS não é atualizada há quase uma década.

Nesse período, foram lançados muitos remédios de eficácia comprovada, úteis no tratamento do câncer e de outras doenças graves, mas eles não estão disponíveis no SUS. O Senado aprovou um projeto de lei que obriga o Ministério da Saúde a atualizar as tabelas de remédios e procedimentos do SUS pelo menos uma vez por ano. O projeto, apoiado pelo próprio ministério, está em tramitação na Câmara dos Deputados.

Fabinho, no entanto, não era um desses casos de dilema da Saúde. Seu tratamento era relativamente barato; ele era uma criança, que deve ter preferência na alocação de recursos. O descaso no cumprimento da ordem judicial, aí, é sintoma de um problema grave: a falta de clareza na política de saúde está levando a um comportamento cínico, desleixado, que custa vidas. “O que aconteceu com Fabinho dá desânimo a quem cuidou dele”, diz a pneumologista Marina Andrade Lessa. “Nosso trabalho é refém do poder público.”

É um desvio do sistema que as decisões vitais para pacientes como Fabinho dependam de ações, recursos e burocracia. Elas devem ser tomadas por quem tem contato com as pessoas. “Fabinho tinha os olhos mais lindos do mundo”, diz Marina.

A assistente social do Inca, Claudia Leivos, lembra-se dos últimos meses em que conviveu com Fabinho. “Ele estava orgulhoso porque foi escolhido como capa de uma cartilha nossa.” O desenho de Fabinho estampa a cartilha dos direitos dos pacientes de câncer do Inca – uma escolha que hoje soa irônica. “Ele dizia que agora era artista e que distribuiria autógrafos pelo hospital. Mas a última vez que o vi parecia muito cansado”, afirma Claudia.

“Fabinho era feliz”, diz a mãe, apesar da rotina de hospitais e remédios. Quando estava em casa, brincava com os vizinhos, andava de bicicleta, chegou a jogar bola com o cateter no peito. Apegava-se a todo mundo. No sobrado de Jacarepaguá, Maria das Graças procura o que fazer. “Eu vivi em torno dele. Agora ando pela casa sem função. Ele era minha vida.” O pai chora, conta algumas travessuras e repete sempre, com seu sotaque nordestino: “Ele era demais”.

Os problemas de saúde não deixaram Fabinho estudar direito. Aprendeu mais em casa, e com professoras que iam aos hospitais. Tinha uma curiosidade espontânea. Gostava de consertar eletrodomésticos, e às vezes conseguia, segundo o pai. Também colecionava fotografias e informações sobre ônibus e caminhões. No computador da irmã, fez um arquivo sobre como dirigi-los.

No último aniversário, entre o Natal e o Ano-Novo passados, os pais lhe fizeram uma festa surpresa. “A gente se virava para dar uma festinha, os vizinhos ajudavam, porque ele merecia, por passar por tanta coisa”, diz Maria das Graças. Seus 14 anos foram cercados dos amigos e parentes mais próximos e amigos da vizinhança. Depois do bolo e das fotografias em que sempre saía fazendo caretas, jogou videogame com os meninos da rua.

No condomínio Cesar Maia, com suas quadras numeradas e ruas batizadas com letras, o menino da casa 37 da Rua F suscitava um misto de pena e admiração. Sua luta pela vida fazia dele uma espécie de herói e símbolo de superação. Cada vez que ele sumia, para tratamentos, surgia uma incerteza sobre sua volta.

“Era uma felicidade vê-lo de novo brincando na rua depois de um sumiço. Ele dava esperança para a vida da gente”, diz a vizinha da casa 69, a dona de casa Rosemary Gonçalo da Silva. No mês passado, Fabinho deixou a todos preocupados quando desapareceu numa ambulância de manhãzinha. E, desta vez, não voltou.

Fabinho era um adolescente típico de muitas maneiras – a paixão por música e jogos eletrônicos. A irmã, Fiama, diz que fica com saudades do irmão quando vê novelas. “Ele adorava e sabia todas as músicas. Tinha uma memória incrível.” Também sonhava em ter um quarto só para ele, já que, desde pequeno, dormia com os pais. Mas Fabinho era bem diferente em outros aspectos. Tantos tratamentos e remédios frearam seu desenvolvimento. Tinha 14 anos, mas corpo de 10.

Na vizinhança, muitos garotos que eram seus amigos quando mais novos passaram a rejeitá-lo. Nos últimos anos, ia menos à rua. “Ele me contou que alguns estavam chamando ele de esquisito”, diz a mãe.

Dos que continuaram fiéis, se destaca Iúri da Silva, de 12 anos. Os dois viviam um na casa do outro. Com a piora na saúde de Fabinho, Iúri passava horas na casa 37, para longas maratonas de videogame e brincadeiras com carrinhos de ferro.

Já no fim, as alegrias de Fabinho foram escasseando. Andava poucos metros e já ficava cansado ou começava a tossir. Passou a ir à pracinha apenas para ficar sentado nos bancos vendo as outras crianças brincar. Depois, nem isso.

Tinha de recorrer à nebulização e muitos copos d’água para conter a tosse. Adeus bicicleta, futebol e pique na rua. “Ele passou por quase tudo sem reclamar. Mas na semana que morreu me disse que estava cansado demais.

Ele tinha crises de tosse tão fortes que ficava com a boca e as unhas roxas”, diz a mãe. De tudo, Maria das Graças tem apenas um arrependimento: não ter deixado Fabinho tomar banho de chuva. Ele sempre quis, mas ela, preocupada com sua saúde, proibia. “Agora fico imaginando meu filho correndo na chuva, molhado e feliz.”

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