terça-feira, 14 de setembro de 2010



14 de setembro de 2010 | N° 16458
MOACYR SCLIAR


Fidel Castro, ou: a arte de se reinventar

Anos atrás estive em Cuba, como membro do júri do Prêmio Literário Casa de las Américas. É uma premiação antiga, bastante famosa, e a cerimônia de encerramento costuma ter repercussão mundial. Ao longo dos anos, esta cerimônia às vezes teve a presença de Fidel Castro; às vezes, não. Perguntei a um dos organizadores se, daquela vez, o premier viria. Ele suspirou: tratava-se de algo inteiramente imprevisível (não veio).

Naquela mesma noite, no hotel, olhando a TV estatal, tive outra demonstração da imprevisibilidade de Fidel. De repente, a programação foi interrompida, e ali estava ele, o premier Fidel Castro. Que falou horas a fio, sobre assuntos os mais variados, incluindo recomendações sobre cuidados com vacas; essas súbitas aparições, descobri depois, não eram raras e faziam parte do estilo pessoal de Castro.

O tempo passou, Fidel Castro adoeceu, transferiu o poder ao irmão Raúl. Mas não sumiu: semana passada, reapareceu, com uma surpreendente entrevista dada ao jornalista americano Jeffrey Goldberg, da revista Atlantic. Entrevista que, aliás, foi iniciativa do próprio Castro. Goldberg, como se recorda, havia escrito sobre as relações entre Israel e o Irã e foi esta matéria que levou Fidel a convidá-lo para ir a Cuba.

A entrevista, longa, teve pelo menos três revelações surpreendentes. A primeira estava na frase, agora já famosa: “O modelo cubano não funciona mais, nem mesmo para nós”, que aparece na matéria de Goldberg, e que, segundo Fidel disse depois, resultou de uma “má interpretação”. Mas outras duas opiniões não foram desmentidas.

Assim, Fidel admitiu que errou ao pedir ao premier soviético Nikita Kruschev que lançasse um ataque atômico aos Estados Unidos, caso este país agredisse Cuba; e criticou energicamente o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, por negar o Holocausto judaico na II Guerra e por adotar posições francamente antissemitas.

Todas estas coisas fazem pensar. Em primeiro lugar, mostram que o alinhamento automático, um antigo característico da esquerda, às vezes tem resultados no mínimo constrangedores; aqueles que, à época da Guerra Fria, aplaudiam a disposição de atacar os americanos com armas nucleares agora constatam, em retrospecto, que se tratava de um erro.

Erro é também apoiar o fundamentalismo como instrumento de luta “anti-imperialista” quando, na verdade, não passa de fanatismo puro e simples, qualquer que seja o lado (e o pastor Terry Jones, aquele que queria queimar o Corão, mostra que a estupidez não tem fronteiras). Por outro lado, temos o próprio fenômeno Fidel. A revolução cubana ocorreu há mais de 50 anos, e durante a maior parte desse tempo ele ficou no poder; mais tempo que Getúlio, que Franco, que Salazar. Isto certamente resulta de uma tendência autocrática, mas associada a uma, digamos, flexibilidade que não é habitual em ditadores.

Como disse Julia Sweig, especialista norte-americana em assuntos cubanos que acompanhou Goldberg: “Fidel está começando a se reinventar como estadista veterano, não mais como chefe de Estado, mas principalmente no plano internacional... Questões de guerra, paz e segurança internacional estão no foco. Está revisitando a História e revisitando sua história pessoal.”

E há mais, diz Julia: “Fidel pode estar dando uma mãozinha para que o irmão Raúl conduza as reformas necessárias em Cuba, incluindo uma reaproximação com os Estados Unidos de Obama”.

Fidel Castro está com 84 anos, uma idade que a gente costuma chamar de provecta. É possível que alguns de seus antigos aliados fale em senilidade; mas é possível também ver nesta tardia autocrítica um ato de renovação. O que é, convenhamos, gratificante, ao menos em um mundo em que a chamada terceira idade cresce sem cessar.

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