quinta-feira, 23 de setembro de 2010



23 de setembro de 2010 | N° 16467
PAULO SANT’ANA


O rei careca

Enquanto fazia a barba com o cabeleireiro Martins, ontem, criei uma parábola que serve para definir a extensão de perversidade que deriva dos poderes de um governante autoritário.

Eis a parábola: um rei mandou chamar o seu cabeleireiro e ordenou-lhe que raspasse inteiramente a sua cabeleira, não podia restar um só fio de cabelo na cabeça do rei.

O cabeleireiro, assustado, disse ao rei que não seria capaz de raspar-lhe o coco. Isso significaria uma injúria à Sua Majestade, expondo-lhe ao ridículo em uma época característica de grandes cabeleiras.

O rei respondeu ao cabeleireiro: “Acho que você não me entendeu. Eu não estava lhe concedendo o direito de recusar a me raspar a cabeça. Eu estou ordenando que você me raspe a cabeça. Ou me raspa a cabeça ou eu mando matá-lo”.

O cabeleireiro, tremendo de medo, raspou a cabeça do soberano. O rei olhou-se no espelho e se achou ridículo com a cabeça raspada.

Mandou trazer o cabeleireiro à sua presença e lhe disse: “Você cometeu um crime de lesa-majestade ao me raspar a cabeça e me deixar neste estado lastimoso de não poder me mostrar nos atos públicos do meu mandato. Por isso vou mandar matá-lo, você próprio admitiu que iria cometer uma injúria contra mim se me raspasse a cabeça. Ou seja, o seu crime foi acompanhado de sua própria confissão. Guardas, cortem o pescoço desse criminoso”.

E assim foi executado o pobre cabeleireiro do rei.

Com os governantes autoritários, com os reis despóticos, dá-se o seguinte: seus governados ou súditos nunca têm razão, embora lhes sobrem razões.

E é imperioso (ou imperial) castigá-los.

Essa parábola que criei no barbeiro, fi-lo para passar o tempo. Meu barbeiro é para mim um homem de 1001 utilidades.

Ele primeiro me tosa a barba com a máquina. Depois escanhoa meu rosto inteiro com espuma oriunda de água quente.

A seguir, dá-me a primeira passada de lâmina, meio que superficial. Vem com a segunda passada de lâmina, esta mais detalhada, cuida com meticulosidade dos vincos, das ondulações da pele e das rugas.

O danado do barbeiro ainda tem o cuidado de dar uma terceira passada, quando então não restam nem mais vestígios dos meus pelos.

Não terminou ainda o meu barbeiro: ele me emparelha com a lâmina as sobrancelhas, depois de cortá-las na altura com tesoura auxiliada por um pente nivelador.

Vai em seguida para as orelhas, onde usa uma máquina que arranca os pelos do trago, aquela crista da orelha, sem qualquer dor.

Não contente com essa operação arranca-pelos, meu barbeiro parte para meu nariz. Com auxílio de outra maquininha, uma suave cortadeira, ele tira com o batiscafo todos os excessos de altura dos meus pelos das duas narinas.

Não sei como aquele homem consegue cumprir toda essa mão de obra em apenas 30 minutos.

Quando não crio parábolas nessa meia hora paciente de submissão, durmo.

E, quando finaliza, o meu barbeiro me acorda e vai buscar uma toalha quente, que ele põe em cima de meu rosto besuntado de creme hidratante.

Como está barata a vida no Brasil. A tabela de preço para essa barba toda e derivados é de apenas R$ 10 no Salão Dia e Noite, da Rua Andrade Neves.

Pago R$ 15 e saio desconfiado de que deveria pagar R$ 20.

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