sábado, 18 de setembro de 2010



19 de setembro de 2010 | N° 16463
VERISSIMO


Os clarinetes

Um conjunto só de clarinetes de São Paulo tem um nome ótimo: Sujeito a guincho. Não, nenhum membro do quinteto corre o risco de ser guinchado e levado para um depósito de músicos faltosos até pagar uma multa, caso errar uma nota. É que o clarinete é um instrumento notoriamente perigoso: a qualquer momento pode dar um guincho extemporâneo. Não há nada para o clarinetista fazer a respeito, salvo rezar para que não aconteça.

O guincho não depende de embocadura errada, palheta ruim ou má execução. Acontece mesmo para os melhores. Uma vez vi o Benny Goodman tocando na TV e no meio do seu solo o clarinete deu um guincho. Benny Goodman, o mais festejado virtuoso do instrumento do seu tempo, o cara que tocava jazz e Mozart com a mesma maestria, deu um guincho ouvido por milhares de espectadores.

Em matéria de majestade lesada foi como se o príncipe Phillip pisasse na cauda do vestido da rainha Elizabeth e ela entrasse no parlamento só de combinação. Goodman manteve sua empáfia e continuou Rei do Swing mas imagino que a lembrança daquele guincho tenha atormentado seus últimos anos

Clarinetistas contemporâneos de Benny Goodman lideraram grandes orquestras, como ele. As bandas de Artie Shaw, Jimmy Dorsey e Woody Herman também foram famosas. Artie Shaw é um ídolo para clarinetistas, não tanto pelas suas qualidades como músico e como pessoa (era judeu, como Goodman e, como este, também ajudou a derrubar barreiras raciais no mundo da música, além de ter problemas com a inquisição anticomunista da época pelas suas ideias de esquerda) ou pela sua versatilidade (também foi escritor) mas por ter sido casado, entre outras, com a Ava Gardner.

O clarinete dá guinchos malucos porque é um instrumento esquizofrênico.

Em nenhum outro instrumento de sopro a diferença entre os registros é tão marcada. Um clarinete tocado no registro alto é um instrumento, nos registros médio e baixo é outro. No seu registro alto o clarinete é esganiçado, estridente e até um pouco histérico. Já seu registro médio e baixo é, na minha opinião, o som mais bonito produzido no mundo. Os registros baixo e o alto do clarinete nem se conhecem.

No jazz de Nova Orleans ou no Dixieland o clarinete ia costurando pelo alto enquanto o trompete atacava pelo meio e o trombone sustentava por baixo. Nas bandas de swing como as lideradas por Goodman e os outros o clarinete raramente descia do registro mais alto, para não ser soterrado pelo volume do conjunto.

O choro brasileiro costuma usar o clarinete de cima a baixo mas concentra-se mais nos registros alto e médio. Mas lá pelos anos 40 o saxofonista americano Lester Young, inventor do cool, que segurava seu sax tenor na horizontal e tocava sem vibrato, expelindo quase mais sopro do que som, começou a tocar o clarinete do mesmo jeito. E apareceu outro instrumento. Um terceiro clarinete.

Anos depois Jimmy Giuffre, saxofonista como Young, também aderiu ao clarinete e adotou o seu som quase sussurrado. No timbre em que Giuffre tocava, chamado de “chalumeau”, o nome da flauta doce primitiva que deu origem ao clarinete, este se transformava num instrumento pastoral. Além de lindo, conveniente. Um guincho neste estilo soaria como a imitação de um pássaro do campo.

(Dedicado ao Paulo Moura)

Em nenhum outro instrumento de sopro a diferença entre os registros é tão marcada.

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