quarta-feira, 29 de setembro de 2010



29 de setembro de 2010 | N° 16473
DAVID COIMBRA


Como surgiu a palavra escrita

Tempos atrás conheci um cara que foi professor de surdos-mudos. Ele me contou algo sobre o qual nunca havia pensado: que, para um surdo-mudo, é MUITO MAIS DIFÍCIL aprender a ler e a escrever do que para quem ouve bem. Revelou-me, o professor, que não raro, um surdo-mudo atravessa a existência nas trevas do analfabetismo absoluto.

A informação a princípio me deixou perplexo. Afinal, a leitura é um exercício silencioso. Você não precisa falar ou ouvir para ler. Nem deve. A concentração necessária à boa leitura faz-se na paz e na quietude.

Assim, eu imaginava que os livros eram um refúgio de Primavera para quem não podia ouvir ou falar, quando ocorre exatamente o contrário.

Por quê???

Porque nosso sistema de escrita é fonético. Quer dizer: cada letra representa um som. A palavra escrita “casa” reproduz simbolicamente os sons pronunciados: “ca... sa”.

Para quem nunca ouviu este som, a palavra “casa” não significa nada. É apenas um desenho: uma meia-lua crescente, “C”; uma pequena torre, “A”; uma serpente, “S”; outra torre, “A”. Agora, se eu desenhar um quadradinho com um triângulo em cima, todos vão entender que estou representando uma casa.

Um surdo-mudo de nascença, para aprender a ler, tem de DECORAR todas as palavras. Você percebe como isso é complexo? Se eu escrever, por exemplo, fuquifúqui, lóqui, extradular, aiam e triquetrique-rolimã-blimblim, que são palavras típicas do dialeto porto-alegrense, mas que não existem na língua portuguesa padrão, se eu escrever qualquer um desses termos, um surdo-mudo que decorou as palavras não compreenderá do que se trata. Mas um carioca que ouve bem, e que jamais conversou com um gaúcho, vai depreender o significado das palavras pelo som:

– Eles fizeram fuquifúqui.

– Tu é um baita dum lóqui.

– E aiam? Tudo tri?

– Tudo triquetrique-rolimã-blimblim.

Nós escrevemos os SONS que falamos, entende?

Nosso alfabeto é auditivo.

Suponho que um surdo-mudo tenha mais facilidade em ler em chinês. Afinal, a escrita chinesa é pictográfica. O alfabeto deles é visual. Os chineses precisam decorar o significado de cada desenho que representa uma ideia, um objeto e até um sentimento. Não é à toa que há mais de 40 mil caracteres chineses. Porque há mais de 40 mil coisas no mundo para serem expressas.

Você não precisa saber falar chinês para saber ler em chinês. Um estrangeiro, alguém que jamais pisou na China, jamais viu os olhos amendoados de um chinês ou jamais falou uma única palavra na língua de Mao, esse estrangeiro pode muito bem ler chinês. Porque os pictogramas são símbolos visuais, não sonoros. Como as luzes verde, amarela e vermelha dos semáforos. Como os cartões amarelo e vermelho do futebol.

Os cartões foram inventados, precisamente, por causa do desentendimento verbal entre os homens. Sobretudo devido a UM desentendimento verbal: Inglaterra e Argentina se enfrentavam na Copa de 1966. O capitão da Argentina, o mítico Rattín, não concordou com uma decisão do juiz.

Foi reclamar, mas Rattín só falava espanhol e o juiz só falava inglês. Esbravejou com toda a ênfase de um argentino indignado. Em vão. Não havia um único europeu nas imediações que o entendesse. Resultado: Rattín foi expulso de campo. A caminho do vestiário, furioso, amassou uma bandeira da Inglaterra, escandalizando a torcida, a rainha e o técnico inglês, Alf Ramsey, que xingou os hermanos:

– Animals!

Um incidente internacional, pois. Para que isso nunca mais acontecesse, a FIFA criou os cartões amarelo e vermelho. Ninguém precisava mais falar, ninguém precisava mais escrever, bastava um símbolo. Uma cor.

E agora, no Campeonato Brasileiro, o que se vê é juiz mostrando cartão amarelo por qualquer deslize, até por erro de concordância. Por favor! Por que não usar a língua portuguesa, a última flor do Lácio, inculta e bela?

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