quinta-feira, 16 de setembro de 2010


NINA HORTA

Breves momentos de felicidade

O pão recém-chegado da padaria, dentro de um guardanapo de linho e de uma cesta de palha

DÁ ASSIM, de repente, numa dessas manhãs de primavera. Imagino que haja uma possibilidade de ser assunto de terceira idade, tipo "quem sabe é a última vez", mas me lembro que as crianças quase sempre têm esse dom de usufruir um momento de perfeita felicidade. Todos têm.

Mergulhar no mar. Fazer xixi quando se está muito apertado. Escrever o nome do namorado na areia úmida com um pauzinho. Tomar sol cálido numa tarde fresca ao lado de um amigo calado. Ter uma reunião de negócios cancelada. Deitar numa cama de lençóis trocados e limpos, muitos travesseiros e saber que não há necessidade de acordar cedo no dia seguinte. Fazer uma receita passo a passo e tudo dar certo, bonito e gostoso. A sensação do dever cumprido.

Desci para tomar café. A casa vazia, as portas abertas, entrava um cheiro de guaco e não sei de que flor, um jasmim comportado. Se tinha brisa? Claro. E uma roseira trepadeira cheia de flor, se enroscando no pé de louro alto e seco. O pão fora deixado na mesa, fresco, recém-chegado da padaria, dentro de um guardanapo de linho e de uma cesta de palha.

A manteiga era salgada, mas não muito, inteira, numa manteigueira de vidro americano da Grande Depressão. Não desta, da outra. Encomendei na Ebay, paguei com "paypal". Li que o "paypal" está se estabelecendo aqui. Você se vincula a ele e pode fazer suas compras por internet em perfeita segurança. Desembrulhar um livro também pode ser um momento desses.

Tinha mais coisa para comer, geleia de laranja amarga, coalhada, queijo, um chocolate em pó semi-amargo para desmanchar no leite, mas, para mim, de manhã a benção é café puro e um pãozinho francês e três jornais.

No domingo começo com a Folha e nem penso, vou direto para a Ombudsman, que conseguiu fazer de sua página uma leitura muito interessante, o que é raro na seção de ombudsman. Outros me fazem anotar livros para comprar, gosto desse crítico voraz e semanal.

Já saí do assunto dos breves momentos de felicidade. São assim. Tem a hora que você está varada de fome e cansada. E alguém, quando se menos espera, faz uma massinha mole, com um molho de tomate daqueles antigos, meio adocicado, com uma suspeita de canela e uma pimenta boa para avivar os sabores. Pimba!

São breves por não sabermos nos concentrar neles. Geralmente na hora do café, que é a única hora em que a empregada pode conversar com você, ela vem, fica em pé numa ponta da mesa e começa. "Dizque..." Para quem não sabe, o "dizque" é a introdução para o raconto de sonhos. Não se fala: "dizque estamos precisando de açúcar." Não.

"Dizque eu estava no sítio e a senhora apareceu muito magra, fiquei pensando, será que ela adoeceu?" A essas alturas, completamente hipocondríaca, já virei um feto apavorado na cadeira, o café esfriando, a manteiga derretendo no pão.

Deve ser um sonho premonitório. Vou morrer. "Não; dizque a senhora estava com saudade do cachorro". Eu, com saudade do cachorro? Mas nem tenho cachorro!

Sentiram o drama? É só não deixar que os assuntos que não trazem a felicidade instantânea se misturem e cortem o barato da manhã com cheiro de guaco.

ninahorta@uol.com.br

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