quarta-feira, 9 de dezembro de 2009


JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE

Cumplicidade inaceitável

O objetivo de manter relações diplomáticas ecumênicas não implica apoiar políticas condenadas pela carta das Nações Unidas

A RECEPÇÃO calorosa dada pelo governo Lula ao chefe do regime fundamentalista do Irã não é apenas uma iniciativa controversa da diplomacia lulista. Ela é exemplar de um governo incapaz de fazer distinção entre os interesses nacionais e a obsessão presidencial por liderança entre os grandes deste mundo.

Nenhuma chancelaria ignora que o regime de Teerã e o presidente Ahmadinejad representam hoje um dos mais sérios desafios à paz mundial.

São, por isso mesmo, objeto de um imenso esforço diplomático para que respeitem os compromissos assumidos no regime internacional de controle da proliferação nuclear e na contenção do terrorismo internacional.

Teerã deu início a um programa de nuclearização que despertou suspeitas de ter objetivos bélicos e vem desrespeitando repetidamente as medidas de controle e de cautela solicitadas pela Agência Internacional de Energia Atômica.

Além disso, intervém abertamente na Palestina e no Líbano, dando apoio militar a movimentos armados que não somente recusam qualquer solução de paz com Israel como também contestam e combatem militarmente a própria Autoridade Palestina.

Regime teocrático de índole totalitária, Teerã tem-se notabilizado pela perseguição feroz às minorias religiosas, aos opositores e até às lideranças divergentes do próprio regime.

Nesse particular, Ahmadinejad, além de beneficiar-se de fraude eleitoral generalizada, reconhecida por toda a comunidade internacional e por setores do próprio regime, promoveu uma repressão sangrenta às maciças manifestações populares contra sua reeleição.

Voz solitária na comunidade internacional, o governo brasileiro foi o único a se solidarizar não com o povo sofrido e violentado do Irã, mas com seus algozes, e o fez no tom irônico e desqualificador adotado pelo próprio presidente Lula.

Ademais, Ahmadinejad fez questão de distinguir-se pela intolerância racial e religiosa, negando o Holocausto e pregando a extinção do Estado de Israel, no que contraria a posição reiterada por nossa política externa nos últimos 60 anos, em consonância com todas as resoluções da ONU sobre o conflito israelo-palestino.

Diversas vozes, entre as quais me incluo, alertaram, como era seu direito e seu dever, sobre os prejuízos políticos e morais que as circunstâncias da visita do líder fundamentalista poderiam representar para os interesses do Estado e do povo brasileiro.

Essencialmente, os argumentos avançados por José Serra, Celso Lafer e diplomatas brasileiros de elevada reputação, e que desde já subscrevo integralmente, são muito claros.

O objetivo de manter relações diplomáticas ecumênicas, inclusive relações comerciais e até mesmo políticas com qualquer país, não implica dar um atestado público de bom comportamento nem muito menos apoiar políticas condenadas pela carta das Nações Unidas e que colidem com nossos interesses econômicos, políticos, morais e militares.

A alternativa excludente entre omissão e endosso moral e político é falaciosa. Existe uma imensa variedade de ações afirmativas de política externa que permitem intervir nas questões globais sem confundir engajamento e cumplicidade.

A visita de Ahmadinejad, pelo valor simbólico de que foi revestida, com a fraterna acolhida pelo chefe de Estado brasileiro e com as reiteradas manifestações de identidade de interesses e de visões da política internacional, foi extremamente lucrativa para Teerã, que teve sua política nuclear santificada e encorajada por uma das maiores e mais importantes democracias do mundo.

Isso lhe deu fôlego para recusar o acordo já negociado anteriormente e para anunciar a construção de mais dez refinarias de urânio, em claro desafio a seus interlocutores e à AIEA.

Enquanto isso, o voto de censura do Conselho da AIEA às violações de Teerã, aprovado, entre outros, por China e Rússia, não teve apoio do governo brasileiro, que se absteve.

Se isso é uma contribuição à "paz desejável", como afirma o principal porta-voz diplomático da presidência, Marco Aurélio Garcia, em artigo publicado nesta página em 26/11, não sabemos mais o que é paz nem o que é desejável.

Também não sabemos o que justificou tanto empenho em agradar ao líder xiita, pois o autor se esmerou mais em distribuir ofensas do que em oferecer argumentos plausíveis.

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE , 68, é professor titular aposentado da FEA-USP e pesquisador sênior do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP. É autor de "O Legado de Franco Montoro".

Nenhum comentário: