terça-feira, 22 de dezembro de 2009



22 de dezembro de 2009 | N° 16194
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Entre ilhas dispersas

Quando comprei meu primeiro celular – mais por sua aparência do que por suas virtudes ocultas –,- o vendedor recitou uma longa lista de suas proezas. Mal o escutei. A certa altura o interrompi e lhe disse que só tinha duas perguntas: o aparelho falava? Recebia ligações?

Pois isso é tudo que peço de um telefone celular. Leio agora na Veja que há 100 mil usos para o inteligente engenho. Um dos modelos, por exemplo, traça rotas em cidades e estradas; faz todas as operações de uma calculadora financeira; contém 50 mil verbetes e 30 mil expressões de um dicionário médio; produz cópias como qualquer scanner;

apita quando detecta um radar nas ruas e estradas do país; cria cardápios saudáveis; permite abrir e editar arquivos; providencia uma agenda eletrônica; apresenta um game com cenário espacial; reúne as principais leis brasileiras.

São qualidades prodigiosas. Mas eu me pergunto se com tudo isso o celular não terá esquecido sua principal finalidade.

É bom conhecer os caminhos onde estamos e para onde vamos. É excelente fazer contas sem um milhão de cálculos aleatórios. É útil manter-se à distância do Houaiss e do Aurelião. É agradável rever pessoas e imagens que prezamos. É sensato verificar se estamos dirigindo devagar ou depressa demais. É ótimo consumir alimentos saudáveis. É uma vantagem dominar os segredos dos arquivos. Nunca desdenharia a importância de uma agenda eletrônica. Pouca coisa desperta mais o sonho do que um game especial. E nenhuma lei é descartável.

Tudo isso é muito bom. Mas eu torno a me indagar se, a todas essas, o telefone portátil não terá se desviado de seu objetivo maior, o da simples operação de estabelecer pontes entre ilhas dispersas do arquipélago humano.

Pois não é diversa a sua missão. O que quero de meu trivial aparelho é que ele me ponha em contato com outras criaturas, que ele transmita um simples, elementar recado.

O que desejo de suas múltiplas dezenas de aplicativos é me comunicar com pessoas, é estabelecer vínculos com meus semelhantes, é passar um pedido, uma súplica, uma mensagem. Para traçar rotas, tenho mapas; para produzir cardápios, conheço restaurantes; para percorrer códigos, recorro à minha biblioteca.

Mas jamais encontrarei melhor invenção do que o celular para transmitir uma singela declaração de amor.

Dia de folga de uma pessoinha linda. Uma ótima terça-feira para todos nós.

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