segunda-feira, 28 de dezembro de 2009



28 de dezembro de 2009 | N° 16199
KLEDIR RAMIL


Autobiografia não autorizada

Resolvi escrever minha autobiografia. Como há passagens na minha vida que eu só lembro de ouvir falar, decidi que seria uma autobiografia não autorizada. Não posso assinar embaixo de todas as histórias que contam a meu respeito. A maioria deve ser mentira. Principalmente as histórias dos anos 70, década que consegui atravessar não me pergunte como.

Pensei em começar contando a noite em que dormi com três mulheres. Foi no berçário da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas, onde dormi com duas recém-nascidas e uma enfermeira. Dessa noite inesquecível, ficaram alguns conceitos que carrego pela vida inteira.

O primeiro deles é que as mulheres gritam mais que os homens. O segundo, que as enfermeiras são pessoas carinhosas. Lembro também de ter enxergado seios, mas não tenho certeza se eram de verdade ou, mal começando a viver, eu já estava sonhando.

A vida foi avançando e me transformei em um sonhador compulsivo, pois no mundo da imaginação eu acumulava conquistas que a realidade não me permitia. Lembro que fui astronauta.

Andei pelas galáxias sem me preocupar com detalhes técnicos como foguetes e tubos de oxigênio. Fui Gary Cooper, fui Johnny Weissmuller, fui Frank Sinatra e fui até meu próprio pai, com seu bigode, óculos Ray-Ban e uma técnica refinada na condução do volante da Ford F100.

Fui um amante latino, desses que enlouquecem as mulheres e, como a vida é uma via de mão dupla, uma delas acabou desequilibrando minha saúde mental. Aprendi a reciclar meus delírios e comecei a escrever, com o ouvido interno, canções de amor em que o nome da musa Greta Garbo aparecia subentendido nas entrelinhas musicais.

Peraí, acho que avancei rápido demais para quem pretende escrever um livro de 600 páginas. Nem contei o batizado, os primeiros passos e minha primeira palavra: hipérbole. Isso mesmo, uma proparoxítona.

Assustados com o fenômeno, com o que poderia ser uma criança extraordinária, talvez um gênio da matemática ou a nova encarnação de um Lama Tibetano, meus pais chamaram o Dr. Chostnoy.

Na falta de um instrumento adequado, o pediatra enfiou um termômetro no meu sovaco para tentar medir o QI. O resultado mostrou 36 e meio, o que deixou uma decepção no ar e evoluiu para uma depressão familiar coletiva. Começaram a me tratar como uma criança estranha, o que não estava muito longe da realidade. (Continua)

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