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domingo, 13 de dezembro de 2009
FERREIRA GULLAR
Quase um precursor
Preservar a obra de arte é uma necessidade que nasceu quando o homem criou o conceito de arte
O INCÊNDIO que destruiu parte das obras de Hélio Oiticica trouxe à baila o problema da conservação dos acervos artísticos que, no Brasil, na maioria dos casos, ficam com os herdeiros.
Afora as dificuldades que estes, muitas vezes, criam à exibição e difusão das obras herdadas, resta o problema da conservação delas. No caso em que não ficassem com a família do artista, deveriam ser entregues aos cuidados de algum museu, mas nem sempre estes dispõem de espaço e recursos para guardar, conservar e difundir satisfatoriamente novos acervos.
Por outro lado, os herdeiros resistem a abrir mão do controle que exercem sobre as obras herdadas; as quais, algumas vezes, valem verdadeiras fortunas. Um exemplo louvável de desprendimento material e respeito às obras do autor falecido foi dado por Maria Camargo, viúva de Iberê Camargo: propôs à Gerdau criar uma fundação para preservar e difundir as obras do marido, sendo que a empresa arcaria com os custos enquanto ela doaria todo o acervo à instituição. Deu certo. Um exemplo a ser seguido.
Preservar a obra de arte é uma necessidade que nasceu quando o homem criou o conceito de arte, mas os museus mesmos só surgiram na Europa já em começos do século 19. Antes, bem antes, já havia os colecionadores, surgidos graças à invenção da pintura a óleo e o quadro de cavalete, já que não seria possível colecionar afrescos e murais.
E a verdade mesmo é que a pintura e a escultura não nasceram como arte e, sim, como magia: quando o homem das cavernas percebeu, num pedaço de sílex, uma figura semelhante à cabeça de um bisão, certamente imaginou que aquele era um outro modo de existência do animal.
Essa mesma fascinante semelhança entre a imagem pintada e os seres reais terá dado origem às pinturas parietais do Paleolítico, realizadas em cavernas escuras, com a ajuda de tochas acesas. Por que pintá-los em lugares quase inacessíveis e sem luz? Só a crença em suas possibilidades mágicas explica isso. Sem dúvida, não foram feitas visando à visitação pública, como ocorreria 18 mil anos depois.
Foi o homem moderno que os transformou em arte, objeto de contemplação e criou museus para conservar e exibir as obras que merecem essa qualificação. Com o tempo a função de guardar obras de arte emprestou aos museus uma espécie de função consagratória, segundo a qual o que ali está é arte, do contrário não estaria.
Não obstante, pode haver ali obras que bem poderiam ser consideradas como "drogas de arte". É, portanto, compreensível que todo artista queira ter obras suas no acervo de museus, já que isso implica em reconhecimento tácito de seu valor.
Mas o museu também mudou, uma vez que o conceito de obra de arte sofreu grande transformação, a partir do começo do século 20. Se ainda no final do século 19 Cézanne desejava que sua pintura tivesse "a solidez das obras dos museus", essa já não parecia ser a preocupação dos cubistas e muitos menos de um dadaísta como Marcel Duchamp.
Em razão disso, surgiram os museus de arte moderna, enquanto o Louvre e o Prado, por exemplo, são basicamente museus de arte do passado.
Os movimentos de vanguarda vieram por em questão o caráter permanente dos valores estéticos.
Duchamp chegou a negar o valor artístico das obras dos museus, o que, aliás, já estava implícito no seu célebre urinol, adquirido numa loja de objetos sanitários. Não obstante, tanto essa sua "obra", quanto muitas outras, terminaram em museus.
Tenho observado essa contraditória relação entre as artes de vanguarda, anti-institucionais, por definição, e o museu, institucional, por natureza. E mais que isso: são os museus que atribuem valor artístico a essas obras. Por exemplo, o urinol de Duchamp, na loja de artigos sanitários, era apenas um urinol mas, no acervo do Pompidou, tornou-se obra de arte.
Ao contrário do escritor, cuja obra se garante escrita em algumas folhas de papel, o artista plástico, por se expressar através de objetos, tem que conseguir espaço onde guardá-los. Vivi esse drama, quando poeta neoconcreto, ao criar poemas-objeto.
Imaginando quantos deles faria ao longo da vida, tomei-me de angústia já que meu pequeno apartamento não os iria caber. Bolei, como solução, espalhá-los de madrugada pela cidade, numa espécie de ação terrorista.
Depois evoluí para uma exposição que começaria às 17 horas e terminaria às 18, quando, ao acionar um detonador, as obras todas iriam pelos ares. Propus isso ao Oiticica, que não topou. Foi uma pena, pois, se a tivesse realizado, me teria tornado o precursor dos "happenings".
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