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sábado, 26 de dezembro de 2009
27 de dezembro de 2009 | N° 16198
MOACYR SCLIAR
A vida sob os viadutos
No Colégio Júlio de Castilhos aprendi uma canção francesa chamada Sob as Pontes de Paris (Sous les Ponts de Paris). Dizia mais ou menos o seguinte: “Sob as pontes de Paris/ quando desce a noite/ toda a sorte de vagabundos se infiltra sorrateiramente/ e ficam felizes de encontrar onde dormir”.
Porto Alegre não tem o Sena, nem as pontes de Paris. Mas Porto Alegre tem o Arroio Dilúvio, com suas pontes e, sobretudo, Porto Alegre tem os viadutos. E ali, como na capital francesa, muita gente procura abrigo. No ano passado, um levantamento da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), órgão da Prefeitura, falava em 1200 moradores de rua.
Numa cidade com mais de um milhão de habitantes não chega a ser um número muito grande. Mesmo muito pobres as pessoas acabam achando uma casa; nem que seja um barraco na periferia.
Morar na rua é opção, e resulta, sobretudo, de uma vida infeliz. Quase a metade dessas pessoas tem problemas familiares; 70% vivem sós, uma situação para a qual colaboram o alcoolismo e as drogas.
Ou seja: não é só uma questão social, é mais complicado que isso.
Qual é a condição básica para viver, ou sobreviver, em baixo do viaduto? Eu diria que é a indiferença. Para essas pessoas, aquilo que incomoda a classe média em absoluto não conta. A falta de privacidade, por exemplo. Tudo que os moradores de rua fazem é público, tudo.
Eles estão ali, comendo, ou bebendo, ou dormindo, ou fazendo as necessidades, absolutamente indiferentes ao olhar dos outros. Há quem não consiga conciliar o sono com barulho; não é o caso deles.
Por sobre suas cabeças, no viaduto, ruge o tráfego urbano, intensíssimo num país em que o carro se tornou um indicador maior de progresso e de afluências. Isso não impede que durmam (é claro que a cachaça atua como um sonífero poderoso).
Também a noção de propriedade para eles é diferente. Sim, têm as suas coisas, que em geral cabem num carrinho de supermercado – em todas as partes do mundo os gerentes desses estabelecimentos já devem ter aceito com resignação o fato de que tais carrinhos serão sumariamente confiscados.
Mas, por outro lado, muitas vezes deixam essas poucas coisas abandonadas. Na manhã do domingo passado passei sob o viaduto da Silva Só, onde vivem muitos habitantes de rua.
Detive-me a contemplar um colchão. Era um colchão de espuma, velhíssimo, esburacado. Sobre ele, um cobertor, igualmente velho, esburacado. Mas, e esse foi o detalhe que me impressionou, e comoveu, o cobertor estava cuidadosamente dobrado, caprichosamente dobrado. Pensei então no homem ou na mulher que o havia dobrado.
Ao fazê-lo, talvez num ato automático e reminiscente de uma infância quem sabe vivida de uma maneira melhor, essa pessoa colocara um pouco de ordem em sua vida.
Uma partícula de ordem, por assim dizer, mas que deve ter contribuído para restaurar algo da dignidade que existe em qualquer ser humano, por mais precária que seja sua existência. Ao ver o cobertor dobrado, a pessoa deve ter ficado satisfeita consigo mesma: eu não sou um traste completo, eu sou alguém, ainda existe esperança para mim.
Ou seja: sob os viadutos de Porto Alegre, como sob as pontes de Paris, a vida resiste.
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