quarta-feira, 23 de dezembro de 2009



3 de dezembro de 2009 | N° 16195
PAULO SANT’ANA


Libelo à Infraero

Dezenas de pessoas me têm reclamado de que o aeroporto Salgado Filho está fechado para voos de chegada e saída, todos os dias, das 24h às 6h15min. Mas quando se trata de salvar vidas, não tem explicação que o aeroporto não abra naquele espaço de tempo. Tal o libelo que se depreende da eloquente correspondência que recebi de um cirurgião que salva vidas:

“Naquela terça-feira, 11 de setembro de 2001, quando os muçulmanos ensandecidos puseram as torres gêmeas para dançar e fizeram um grande rombo no Pentágono, houve a maior paralisia aérea na história americana de todos os tempos.

Com o Capitólio e a Casa Branca ainda intactos, e os inimigos lambendo os beiços, ninguém podia decolar, ninguém podia pousar, e a ordem era abater, sem questionar, qualquer coisa que voasse e parecesse maior do que uma gaivota.

Pois nesse clima de pânico absoluto, com medo e paranoia servidos em grandes bandejas de terror, um único voo foi autorizado em todo o território americano: um Lear Jet decolou de Los Angeles, no meio da tarde, a caminho de Miami. Por que a exceção? Porque duas pessoas na Flórida dependiam, para continuarem vivendo, de órgãos doados na Califórnia.

Como se percebe, em lugares civilizados, mesmo em tempos de guerra, a preservação da vida é prioritária.

Uma outra terça-feira, 15 de dezembro de 2009, anoitece em Porto Alegre, tudo parece estar em paz, e a única briga no espaço aéreo estava reduzida a um pequeno conflito de quero-queros que disputam território na cabeceira de uma das pistas do aeroporto local.

Uma chamada da Central de Transplantes de Santa Catarina, que tem sido uma parceira exemplar dos gaúchos oferecendo ao RS todos os órgãos que lá não são utilizados, e a informação de que dois pulmões perfeitos estavam à disposição da Santa Casa, o hospital onde foram feitos até agora dois terços dos transplantes de pulmão do Brasil.

A retirada estava programada para se iniciar às 22h em Caçador (SC) e isto significava tempo hábil para o deslocamento das equipes no avião gentilmente disponibilizado pelo governo do Estado.

E aí começaram os problemas: o voo de volta se faria entre 2h e 3h da madrugada, e fomos informados de que isso seria impossível porque o aeroporto está fechado, por conta de obras de ampliação da pista, das 24h às 6h15min.

Depois de argumentarmos que para um avião pequeno não precisaríamos de toda a pista e que já pousamos em pistas laterais em outras ocasiões, ainda tentamos sensibilizar os interlocutores com a informação verdadeira de que provavelmente os pobres candidatos ao transplante, pela gravidade de suas condições, não teriam uma segunda oportunidade, mas nada disso funcionou.

Havia em cada negativa aquela prepotência pré-orgásmica que caracteriza o anencéfalo no exercício máximo do poder.

Desesperados à procura de uma solução, tentamos identificar alguém que pudesse dar a ordem mágica que restabelecesse a racionalidade, mas descobrimos que, se essa pessoa existe, ela está completamente blindada pela quase comovedora descerebração dos seus súditos.

Como última alternativa, apelamos para o coordenador da Secretaria de Saúde de Santa Catarina, para que tentasse atrasar o início da retirada dos órgãos. Essa decisão é de risco, porque se parasse o coração do doador todos os outros órgãos estariam perdidos.

Como o doador parecia estável, a retirada foi perigosamente transferida para as 2h da madrugada para que, completada até as 5h, pudéssemos voltar a Porto Alegre, em condições de cumprir as normas burocráticas que determinam que os pousos só sejam liberados depois das 6h15min.

A pista parecia limpa, nenhum indício de bom senso ou de sensibilidade na faixa recém pintada do acostamento. Até os quero-queros se recolheram. Acho que de vergonha!

A Olga e o Mario, que tantas vezes flertaram com a morte nos últimos meses, estão felizes com seus pulmões novos, e nem imaginam o quanto os seus sonhos de renascimento foram ameaçados pela burocracia insensível, desumana e abjeta! (as.) José J. Camargo, médico e professor universitário”.

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