quinta-feira, 24 de dezembro de 2009



24/12/2009 e 25/12/2009 | N° 16196
DAVID COIMBRA


Eles não têm amor

Meu pai não foi um bom pai. Eu acho que sou. Ou pelo menos me empenho para ser. Dia desses estava contando uma história do meu pai para alguns amigos. Eu era bem pequeno, uns cinco ou seis anos de idade, e brincava com meu amigo Míti, nós dois armados de bisnaguinhas d’água.

Lembro que caminhamos rindo até a calçada da frente e vimos que o vizinho adubava as plantas no jardim dele. Olhamos para aquele monte de esterco, apertamos as bisnaguinhas e lançamos ali uns três ou quatro jatos d’água, tudo muito inocente. Mas o vizinho não gostou. Virou-se e ralhou:

– Se atirarem água de novo, vou jogar esterco em vocês!

Corremos para o pátio, assustados. Meu pai percebeu que havia algo errado e me segurou pelos ombros:

– O que foi, David?

Contei. Ele se enfureceu. Tomou-me pela mão e me levou até a frente da casa, até o jardim do vizinho. Estacou sobre a grama.

– Tu disse que ia jogar esterco no meu filho? – gritou para o homem, que apoiou no chão a pá com que trabalhava e ficou olhando para ele, mudo.

– Tu disse que ia jogar esterco no meu filho? – repetiu meu pai, desafiador.

O homem não respondeu.

– Pois quero que tu jogue agora! – falou meu pai entre dentes, apontando para mim. – Joga! Joga, que eu quero ver se tu é homem de jogar esterco no meu filho!

O vizinho largou a pá no chão, deu-nos as costas e deslizou para dentro de casa, acuado.

Foi uma atitude de valentia física do meu pai, obviamente, mas não posso dizer que tenha sido algo que me agradou, nem me deixou orgulhoso à época. Criança não aprecia violência.

Terminei essa história, e um dos meus amigos disse:

– Pelo menos o teu pai se importava contigo. O meu nem isso.

Foi então que me dei conta de que muitos dos meus amigos não tiveram bons pais, mas que eles, agora, são bons pais. Como tenho a pretensão de ser. O que mudou entre uma geração e outra?

Sei o que foi. E para falar a respeito me valho de outra lembrança, da qual o protagonista é o homem que, de certa forma, ocupou o lugar do meu pai na minha criação: o meu avô. Quando se referia a pessoas que considerava de má índole, meu avô sempre usava a mesma frase para defini-las:

– Elas não têm amor.

Sempre dizia isso. Um dia perguntei a ele se não queria dizer que aquelas pessoas não “sentiam” amor. Ele balançou a cabeça:

– Não, David. Eles não têm. Porque nunca receberam.

Então compreendi. Elas até poderiam sentir amor, mas não tinham para dar. Os bons pais de hoje, que não tiveram pais tão bons assim, eles certamente receberam amor de outras pessoas.

Já os pais que cometem selvagerias com as crianças, essas coisas grotescas que temos lido nos últimos dias, gente que suplicia nenês com agulhas ou joga-os de janelas, esses sei bem o que há com eles.

Eles não têm amor.

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