sexta-feira, 18 de dezembro de 2009


CARLOS HEITOR CONY

Liberdade de expressão

O demônio invadiu a linguagem das gentes, de todas as gentes, inclusive as ilustres

SIM, O demônio está solto. Quem o dizia era pessoa autorizada: minha mãe. Ela presenciara muita coisa estranha, mas nada que se equiparasse ao que acontecia no nosso tempo.

E olha que a escola era então risonha e franca -como afirmam os saudosistas. Mas, além de minha mãe, leio nas folhas opiniões menos valiosas, mas de análogo sentido.

O Pai das Trevas está em todas -e são cardeais, editorialistas, ministros de Estado e de Tribunais de Contas, juízes e bandeirinhas, cineastas e chefes de polícia que dão razão à minha mãe.

Lembro um romance de segunda classe, filmado há tempos: "Os Sinos de Clochemerle", uma delícia de humor e verdade. Os casais se separam, as filhas fogem com os noivos, o padre quebra a cara do sacristão e, no meio de tudo isso, vendo a mulher fugir com o carteiro, o marido tem suficiente senso crítico para bradar: "O demônio varre Clochemerle!".

Pois o demônio varre o mundo inteiro. O "Osservatore Romano" há tempos acusou Liz Taylor de vadiagem erótica e estabeleceu um critério novo para essas coisas: as profissionais ("hay que gañar la vida, señor!") e as amadoras, que prevaricam pelo amor à arte. Lyz Taylor estaria na segunda categoria.

Os impostos aumentam, os temporais desabam, Barack Obama ganha o Nobel da Paz e todos os cronistas metem o pau no Maranhão. Já não é o demônio que está solto. A ingratidão também está solta.

Mas nada se compara ao caso daquele excelente sujeito que, todas as noites, reunia em seu recente lar a turma de amigos para ouvir Cesar Franck e ler Valéry.

Apagavam-se as luzes, e cada qual tinha uma lanterna portátil. A vitrola começava a "Sinfonia em Ré Menor" e aí todos se concentravam. O dono da casa e recente marido dizia o número da página, "68!", e todo mundo lia em silêncio o poema da página 68.
-Página 108!

O barulho das folhas não quebrava o segundo movimento da sinfonia, e todos se inundavam de ré menor e de Valéry maior. Ao fim da noite, o dono recolhia o Cesar Franck e os 18 volumes encadernados de Valéry. Na noite seguinte, os volumes voltavam às mãos dos visitantes e Cesar Franck voltava à vitrola. Só se abria exceção para os dias de grande unção, quando entrava Monteverdi ou Bach. Mas Valéry era o prato invariável de todas as noites.

Pois foi numa dessas noites. Ao acabar-se a sessão, o dono da casa retirou o Monteverdi da vitrola, gravação de "Solésmes", a noite decorrera contrita. Ao recolher os volumes, só encontrou 16, faltavam dois volumes. Acenderam a luz e todo mundo começou a procurar os Valéry desaparecidos.

Encontraram os Valéry. Estavam na mesinha próxima à porta de saída. Não encontraram, porém, os dois iniciados que haviam fugido, trocando Valéry e Monteverdi pela noite, lá fora. Ele era primo do dono da casa. Ela, a própria mulher, dona da casa. Eles foram iniciar uma nova vida e nunca mais voltaram ao sabá intelectual.

Sabá que nunca mais houve. O dono da casa não estrilou nem estourou os miolos ou o cotovelo. Ficou sem a mulher e sem o amigo, mas conservou intactos os 18 volumes de Valéry. Apenas nunca mais ouviu Monteverdi, Bach ou Cesar Franck. Ouve agora Adelino Moreira, Lupicínio Rodrigues e outros da mesma categoria e do mesmo tema.

Sim, o demônio está solto, aliás, desconfio que sempre esteve. A onda de insânia não varre Clochemerle apenas, varre todo o mundo.

Um indianista esforçado descobriu que os índios aprenderam a se masturbar e, no Xingu, a coisa agora está preta, índio só quer saber de bater punheta.

Mas nada que se compare ao demônio que invadiu a linguagem das gentes, de todas as gentes, inclusive as ilustres, como a do presidente de uma república sul-americana que desprezou o lugar-comum e aboliu o saneamento básico dando nome aos bois, ou melhor, ao boi em si, dizendo a mesma palavra atribuída ao general francês que, diante do estrago de Waterloo, definiu a situação com a mesma palavra.

Se um general do exército de Napoleão e um presidente da República podem, todos nós podemos expressar livremente o que pensamos, dando inclusive a esta crônica o nome que ela merece.

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