quarta-feira, 3 de setembro de 2008


José Renato Nalini - O Estado de S. Paulo

Vinte anos de cidadania

Vinte anos decorreram desde a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil ora vigente. Revisada, alterada, emendada com insistência nestas duas décadas. Porém vigente.

Uma Constituição é um pacto jurídico fundador. Mas é também um compromisso histórico, político, social e econômico. Serve de parâmetro para tudo o que a nacionalidade vier a realizar a partir de sua vigência.

Era natural a expectativa de profundas mudanças estruturais num Brasil que deixava um período autoritário. Por isso a chamaram Constituição-panacéia, remédio para todos os males.

Ambiciosos, os constituintes procuraram abrigar nela todas as aspirações. Por isso a sua ambigüidade, sua prolixidade e o caráter analítico a desafiar a capacidade de memorização de todos os dispositivos.

Sublinhe-se que a elaboração constituinte foi fruto de atuação de um Parlamento que prosseguiu na legislatura e, portanto, seria muito insólito que deixasse de contemplar com especial carinho a função legislativa.

Os aspectos essenciais dessa nova Carta já foram exuberantemente assinalados pela vasta produção doutrinária que ela suscitou. Foi inspirada por experiências de Estados-nação que atravessaram fase análoga: Portugal e Espanha.

Abrigou as mais modernas tendências de prestigiar a principiologia, dar prioridade aos direitos fundamentais e de caracterizar o modelo que o jurista luso José Joaquim Gomes Canotilho chamou um dia de Constituição Dirigente.

Nesse sentido, era um plano de metas e de ação continuada para perdurar. O constituinte fez promessas e incumbiu a nacionalidade de cumpri-las.

Muitas dessas promessas restam descumpridas. O Brasil está longe de se converter na sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos explicitada no preâmbulo da Carta Magna. Todavia ela não é o fator de ingovernabilidade com que se procurou deslegitimá-la.

Algumas conseqüências nítidas da superveniência de um novo pacto puderam ser sentidas. O Brasil jurídico parece já não acatar o princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos normativos.

Uma sanha de inconstitucionalidades fulmina inúmeras das tentativas de se prover a sociedade de normas concretizadoras dos acenos constituintes.

No âmbito desse equipamento estatal denominado Justiça, o resultado de uma Carta que acreditou - como dantes nenhuma outra o fizera - na solução judicial dos conflitos, deflagrou milhões de processos. Tanto insistiu em facilitar o acesso à Justiça que hoje o drama é encontrar a saída da Justiça.

As lides se eternizam em razão da incapacidade de adoção de estratégias mais inteligentes de gestão. O procedimentalismo exacerbado, o ritualismo, a solenização dos julgamentos, tudo torna dificultosa a missão de obter uma decisão de mérito.

Não é só, infelizmente. O apego ao duplo grau de jurisdição converteu o Judiciário numa sofisticada máquina que só funciona com quatro graus de jurisdição.

As sentenças podem ser praticamente desconsideradas, para a rápida tentativa de obtenção de manifestação dos tribunais - instâncias de passagem -, até que os feitos cheguem aos tribunais superiores.

Com garantia de acesso ao Supremo Tribunal Federal, ao qual incumbe a guarda precípua da Constituição. Com uma Carta fundante que optou pela versão analítica, tudo pode ser matéria constitucional e torna imprescindível a apreciação da Suprema Corte.

Duas Justiças comuns e três especiais garantem uma sobrevida às discussões mediante numerosos conflitos de competência. Aliás, dado cultural que acomete até o funcionamento interno dos tribunais, tantas as minúcias que levam o exegeta a converter o dogma do juiz natural num terreno de infindáveis discussões.

O importante é que nunca se falou tanto em direitos fundamentais e, embora sem se alcançar um conceito adequado, fala-se em cidadania e em republicanismo.

A alteração topográfica da enunciação dos direitos é provida de simbolismo. Os direitos humanos extravasam a condição de categorias jurídicas para se tornarem fonte perene de inspiração para o poder público, para a iniciativa privada e para a sociedade em geral.

O conceito de cidadania, o direito a ter direitos, aos poucos contamina a sociedade, que perde o receio de invocar várias fórmulas de reparar injustiças.

Cumpre à lucidez brasileira enfatizar também o capítulo dos deveres, para que os seres humanos se assumam como entes responsáveis, capazes de conferir rumos à sua existência, e não como objetos de perene tutela estatal.

A tese republicana, mais do que distinguir o regime da monarquia - ainda simbolicamente entranhada no inconsciente coletivo -, deve despertar o brasileiro para reclamar boa conduta de todos os detentores de poder.

A coisa pública assim o é por ser de todos, não de apenas alguns. Todo agente de autoridade é um servidor posto à disposição do povo e do interesse coletivo, não um titular de expressão de soberania que pode correr o risco de pensar que só existe para ser servido.

O único problema brasileiro é o da educação. Processo permanente, inconfundível com a escolarização formal. Tanta vez inadequada, tanta vez imbecilizante, ao fazer crianças, jovens e adultos decorarem informações das quais nunca mais irão servir-se em sua vida.

Educação como instrumento transformador, para a formação do caráter e da consciência de cada um, até compenetrar-se de que à criatura racional incumbe crescer - em sabedoria e dignidade - até a plenitude humanamente possível.

Um bom início é fazer que a Constituição seja conhecida por todos. Aquilo que se não conhece não se pode amar.

E se o pacto fundamental padece de alguma enfermidade, é o de não ser objeto de afeição de cada brasileiro ou morador desta abençoada parcela do planeta.

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