05 DE ABRIL DE 2021
DAVID COIMBRA
Darwin e as minhocas
Darwin, às vezes, tocava piano para as minhocas. É sério isso. Darwin adorava a minhoca. Considerava-a um dos seres mais importantes para a humanidade, devido ao trabalho silencioso que ela faz ao arejar a terra, escavando-a sem parar e, assim, tornando-a fértil.
Essa feliz particularidade da minhoca hoje é conhecida e louvada por todos os admiradores da agricultura, mas, no século 19, poucos ligavam para as atividades dos vermes das profundezas da terra. Darwin, sim. Darwin escreveu um livro clássico sobre a minhoca. O título é: A Formação de Humo Vegetal pela Ação das Minhocas. Não li. Só cogitarei ler após enfrentar Ulysses, de Joyce. Mas sei que, naquela época, esse livro tornou-se mais popular do que A Origem das Espécies.
Mas não foi devido ao sucesso do livro que Darwin tocava piano para as minhocas. Quer dizer: não foi em agradecimento, nem para deixá-las animadas. Foi para estudar a reação que o som causava nelas, se é que causava, já disse que não li o livro.
Darwin era um homem que prestava atenção aos menores movimentos da natureza. Foi assim que mudou a filosofia, a história, a ciência e nossa compreensão de quem somos. Ou de quem fomos. Darwin reconhecia o valor dos detalhes.
Em sua viagem de navio de quase cinco anos ao redor do mundo, Darwin reparava, exatamente, na consistência da terra sob seus pés e na espessura das nuvens sobre sua cabeça, colhia do chão pequenos animais para examiná-los com vagar, fascinava-se com caracóis, insetos, besouros e miríades de plantas.
Em certo momento da viagem, Darwin chegou ao Brasil. Passou por Fernando de Noronha e desceu até o Rio de Janeiro, onde vivia nosso imperador Pedro. O relato que ele fez de sua estada no Rio é emocionante, porque descreve um Brasil que nascia como nação.
Darwin embrenhou-se no interior, para visitar uma fazenda. Então, encantou-se com a natureza que descobria pelo caminho. Deixou-se fascinar com o clima quente e úmido, como sempre é o clima dos trópicos, com a fauna viçosa, com chuvaradas que desabavam densas como cascatas e produziam um som que ele jamais ouvira antes.
Darwin talvez tenha amado o Brasil. Mas houve algo que o entristeceu: as pessoas. Eram os anos 30 do século 19, a escravidão vicejava no país. O tratamento que os escravos recebiam o escandalizou. Darwin contou que, ao conversar com um negro, levantou a mão para gesticular e o homem encolheu-se feito um cachorro, temendo ser espancado. O episódio encheu seu coração de constrangimento.
Mas o comportamento dos homens livres igualmente o embaraçou. Um dia, ao parar numa estalagem, sentindo-se esfomeado, Darwin perguntou ao proprietário quando o almoço seria servido. A resposta do homem:
- A comida estará pronta quando estiver. Darwin se calou.
Imagino como deve ter ficado impressionada uma alma sensível como aquela, em meio aos homens abrutalhados do Brasil de século e meio atrás. Mas o que realmente gosto de imaginar é o mesmo Darwin, com a mesma alma sensível, aportando hoje no Rio de Janeiro. Quais seriam suas impressões? Será que veria idêntica rudeza nos brasileiros simples? O que veria nos mais sofisticados? O que pensaria dos descendentes dos escravos que o comoveram no tempo do império? Será que acharia que tudo melhorou? Queria que um Darwin, distante e perceptivo, nos contasse quem realmente somos.
Esta coluna foi publicada originalmente em 23 de janeiro de 2016
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