segunda-feira, 26 de abril de 2021



26 DE ABRIL DE 2021
O PRAZER DAS PALAVRAS

Leviano

Uma jovem leitora faz uma pergunta que revela, no fundo, todo o carinho que tem pelo avô: "Professor, estou começando a cursar Letras e me tornei, sem querer, o STF do idioma aqui em casa. Eu não corrijo ninguém, que não sou dessas, mas meu pai e meu irmão são implicantes e pedem a minha opinião a toda hora sobre as coisas que meu avô fala. Ele é o pai da minha mãe, já falecida, e deixou a colônia para vir morar conosco há alguns anos. Sempre foi para mim um grande papo: sabe tudo sobre plantas, sobre bichos, sobre a chuva. Um parceiro de truco diz que ele é uma enciclopédia, e por isso acho que aqui em casa deviam ser mais tolerantes com algumas coisas que ele fala. Ele diz a pijama, uma telefonema e manda ligar a torneira, coisas assim de velhinho, que eu acho até muito fofas, mas na mesa o pai e o mano riem o tempo todo e pedem a minha opinião, me deixando numa saia justa porque eu não tenho como defender. Desta vez, porém, acho que eles não têm razão: meu avô voltou da fila da vacina com a cara mais alegre do mundo e trouxe um saco de maçãs que ganhou de um compadre. Meu irmão perguntou se ele não queria ajuda para subir os degraus da escadinha da rua e ele respondeu que não precisava, que depois da vacina aquele saco até parecia levianinho. Isso pode, não é? Já vi alguma coisa assim num dicionário na Faculdade, mas agora não ando saindo e o dicionário aqui de casa não serve para quase nada".

Prezada leitora: além do curso de Letras, temos também um avô em comum. O meu também tinha um tesouro dessas coisas simples da vida e dizia - aí ganhou do teu! - a pijame, com E mesmo no fim! E daí? Avôs e avós têm o direito de falar como sempre falaram, para encanto e diversão dos netos, que assim vão guardá-los na memória.

Agora, tens razão de sobra em defender o leviano. Tanto ele quanto leve nasceram da mesma mãe, o Latim levis (nada a ver, claro, com a calça de brim, que tem o nome de seu primeiro fabricante, mr. Levi Strauss). Já na antiga fonte a água não era muito limpa, pois o adjetivo levis podia significar tanto "pouco pesado" quanto "fácil de digerir, sadio, ágil, frívolo, de pouco valor, volúvel, suave, agradável, bom, moderado, fraco, inferior". Portanto, não espanta que, gerados nesta maçaroca conceptual, os dois irmãos, na passagem do Latim para o Português, tenham se misturado no uso, principalmente no sentido de usar leviano por leve. Em 1759, por exemplo, Manuel José de Paiva fala "no Sol e na Terra tão liviana"...

É claro que o lento fio dos séculos vai ajudando as duas formas a assumir sua própria personalidade. As diferenças vão se acentuando - os filhos, por exemplo: leve nos dá leveza, enquanto leviano gera leviandade. Mais algumas décadas e talvez não exista nada mais compartilhado - mas até lá ainda vamos ver autores como Mário de Andrade ("O defunto ficou levianinho") ou Manoel de Barros ("A viola de cocho é levianinha e só tem quatro cordas") usando um pelo outro - o que obriga um bom dicionário como o Houaiss a incluir no verbete leviano, além de "frívolo, inconsequente", a acepção de "aquele que possui pouco peso ou pouca carga; leve". Como vês, teu avô está bem acompanhado.

CLÁUDIO MORENO

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