17 DE ABRIL DE 2021
ELIANE MARQUES
A INVENÇÃO DAS BRUXAS
Nos filmes, geralmente ela aparece na pele de uma invejosa e maléfica senhora velha e corcunda, comedora de criancinhas. Contudo, o adjetivo-substantivo bruxa, mais do que um pretenso insulto, compartilha com o tráfico transatlântico de gente, o extermínio de povos indígenas e a colonização uma história de expropriação material e subjetiva advinda das condições necessárias à formação e ao desenvolvimento do capitalismo. Sobre essa figura Silvia Federici lança novas perspectivas no livro Mulheres e Caça às Bruxas, partindo de Calibã e a Bruxa, sua obra anterior. A autora questiona por que xs principais destinatárixs da violência atual, incluída uma renovada caça às bruxas, são corpos que trouxeram a este mundo todas as pessoas e que respondem pelo trabalho de humanizar e manter a existência de outrxs.
Embora desde o século 4 os relatos monásticos dessem a conhecer demônios terrenos raptores das almas do seio da morte, os fatos constitutivos da caça às bruxas remontam aos séculos 17 e 18, quando se iniciou o julgamento das mulheres pela Igreja. Segundo o historiador Jean Delumeau, o sagrado não oficial foi considerado demoníaco, tudo o que se tinha por demoníaco foi tomado por herético e toda a heresia e o herético ficaram sob a guarda do demoníaco e suas agentes - as bruxas. Para os gregos, haíresis (heresia) se referia à escolha entre filosofias. O cristianismo transformou a escolha em crime-pecado.
Ocorrido em outras partes da Europa sob diferentes formas, o cercamento religioso foi concomitante à instituição da política que confinava as mulheres à subalternidade e ao cercamento de terras na Inglaterra, processo pelo qual a classe proprietária e os membros abastados da classe camponesa cercavam terras comuns, aboliam os direitos consuetudinários e desalojavam trabalhadores. Os efeitos das cercas atingiram com força mulheres mais velhas, viúvas sem alguém que pudesse ajudá-las. O ressentimento e a raiva das chamadas de invejosas advinham da injustiça da perda de suas posses para um vizinho, da presença diária de animais pastando nas terras antes comuns enquanto elas passavam fome.
Silvia Federici assinala que também podem se originar desse quadro as acusações de encantamentos a porcos, vacas, cavalos, entre outros, assim como as acusações de que o diabo ia ter com elas e lhes prometia nunca mais sofrerem privações. Contudo, as bruxas não padeciam de passividade diante da expropriação. Elas resistiam à exclusão social com ameaças, olhares de reprovação e maldições a quem se recusasse a ajudá-las. Algumas delas ofereciam presentinhos às crianças das cercanias na intenção de serem aceitas pelo grupo social.
Hoje, os ataques dirigidos às mães de uma juventude que rechaça a expropriação e combate para recuperar o que foi produzido por gerações de comunidades escravizadas, unido à política de encarceramento em massa, representam um dos aspectos da caça às bruxas. Sob o nome bruxa eram e continuam sendo penalizadas a investida contra a propriedade privada, a insubordinação social, a propagação de crenças heréticas e o desvio da norma sexual, na América e na África.
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