17 DE ABRIL DE 2021
MARTHA MEDEIROS
O que será de nós?
Quem conhece a obra do psicanalista Contardo Calligaris deve ter se sentido, como eu, meio órfã com sua partida precoce. Suas colunas de jornal, entrevistas, palestras, tudo servia como uma espécie de farol que iluminava o caminho rumo à maturidade. Ele defendia a construção de uma trajetória individual autêntica, com experiências variadas, bem diferente da felicidade fabricada com fórmulas de obediência social. Era uma de suas frases mais conhecidas: "Melhor que ser feliz é ter uma vida interessante."
A também psicanalista Maria Homem, sua esposa, em um texto emocionante publicado dias atrás, compartilhou algumas conversas íntimas do casal, em que a pergunta "o que seria de mim sem você?" surgia em diferentes momentos do relacionamento, inclusive de forma cômica. Até que, na etapa final da doença que o levou, a pergunta ganhou um aspecto trágico. Quando estamos na iminência de perder alguém, essa amputação realmente nos assombra: o que vai ser de mim sem você?
A resposta que Contardo deu à Maria serve para todos nós. "Vai ser o que você quiser". A ideia sempre foi essa: crie sua própria vida em vez de se deixar levar ao sabor do vento. É preciso fazer escolhas e se responsabilizar por elas, mesmo sabendo que em tudo há prós e contras, tudo é dicotômico. O risco faz parte da aventura de viver.
Pois é, mas veio essa parada forçada. Cerca de 350 mil famílias perderam parentes, outros milhares perderam amigos, e a população inteira lida com variadas anulações de suas rotinas: a perda dos planos a longo prazo, a perda das idas aos teatros, palestras, shows, feiras e festivais, a perda dos contatos íntimos: não se pode mais sentir o toque, a vibração da voz, a intensidade do olhar de cada um. Tudo o que existia antes ficou distante e o futuro parece tão distante quanto. Estamos encurralados num presente perpétuo, que nos roubou a mobilidade - não só de entrar em outros países, mas de entrar na vida de novas pessoas, de conhecê-las profundamente, de evoluir através delas. Está difícil renovar o estoque de emoções e descobertas. Fomos obrigados a nos contentar com a convivência online, que não possui a mesma potência energética, a mesma substância da presença. O movimento possível, agora, é para dentro. Leitura, reflexão, aprendizado. A busca incessante por conteúdo, única chance de trapacearmos as limitações.
Inventar a própria vida requer uma disposição corajosa para a mudança e autonomia para agir, para lutar contra a banalização dos dias, para criar uma história que nos honre e orgulhe. É o nosso maior desafio hoje: mesmo sem liberdade plena, e avariados por tantas perdas, continuar decidindo o que será de nós.
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