sábado, 17 de abril de 2021


17 DE ABRIL DE 2021
LYA LUFT

Reflexos em águas turvas

A vida inteira busquei explicações e deciframento: encontrei silêncio, segredo, ou mais perguntas. Às vezes o conforto de um ombro, outras vezes... dor.

No último lapso de um tempo com limites, abrem-se águas onde um dia entrarei. Tudo compreendido e absolvido, imagino que, absorta, me tornarei luz sem sombra: puro assombro ou deslumbramento.

Alguém joga xadrez com minha vida, alguém me borda pelo avesso, alguém maneja os cordéis. (Mordo disfarçadamente o fruto da minha inquietação.) Alguém me inventa e desinventa como quer: talvez seja esta a nossa condição.

Bastaria um momento de silêncio para eu ser feliz: mas do fundo do palco, uma voz, sem parar, me chama: serás tu, amor, ou é a morte apenas que reclama? Quando me feriram, meu lado não verteu água nem sangue: eu me verti de mim por essa fenda, escorri para a terra debaixo da relva, ausente. (Alguém sabia sempre que eu estava ali, talvez fosse o teu olhar na noite.) Quando houve um tempo de retorno voltei, subi empurrando a alma com meu sangue, por labirintos e paradoxos até inundar novamente o coração. Talvez com o mesmo ardor de antigamente.

Se te pareço ausente, não creias: hora a hora minha dor agarra-se a teus braços, hora a hora meu desejo revolve meus escombros, e escorrem de meus olhos mais promessas. Não acredites no meu breve sono, nem dês valor maior ao meu silêncio: se leres recados numa folha branca, não creias também: é preciso encostar teus lábios nos meus lábios para ouvir. Nem acredites se pensas que te falo: palavras são meu jeito mais secreto de calar.

No relógio daquelas madrugadas, quando eu era menina e estava insone, a velhinha do Tempo tricotava longas tiras de medo: minha morte sendo preparada nessa trama. Sedas, farrapos, teias tão soturnas, todo o terror que eu esquecia quando me libertavam o sol e as cores, e as vozes da casa...

Alguma coisa me ficou daquelas noites; o metal dos ponteiros, as agulhas, as mãos ossudas de noturnas bruxas, tudo continua na urdidura do fio singular da minha sorte.

Um rio corre entre o porão e o sótão da nossa vida: leva dores e amores, nosso último riso há tanto tempo. Mas numa curva qualquer, porque ainda respiramos, tudo pulsa outra vez, e brilha de alegria sabendo que temos pela frente algum calor, e um rumor de ondas na areia.

Passa no meio de nós, entre o sonho do sótão e o medo dos porões, o rio da vida: que me leve adiante mais uma vez, que venha até mim a sua água turva de decepção ou clara de esperança, com toda a audácia e o fervor que pareciam perdidos.

Dentro desta mulher, uma menina brinca de ciranda na calçada e tem fome de futuro. Dentro desta mulher, uma jovem chega à janela para assistir ao desfile da vida - e se julga imortal. Dentro desta mulher, uma guerreira se reconstrói depois de parir filhos para o mundo, e ninguém sabe se apenas finge não ter morrido também.

LYA LUFT

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