sábado, 21 de novembro de 2020


21 DE NOVEMBRO DE 2020
J.J. CAMARGO

O TOQUE DE ALGUÉM 

Vamos chamá-la de Emília, acho que ela não ia se importar. Como todos os moribundos, ela sabia que ia morrer. A magreza extrema e a serenidade do olhar já passavam essa mensagem, dispensando as palavras. Miúda, olhos de um azul desbotado pelo uso, arcada dentária proeminente pela perda de peso, cabelos brancos contidos por uma toquinha de crochê.

Entregou-me um calhamaço de exames, depois se recostou na poltrona dando um tempo para que eu revisasse as imagens e laudos. Pela total ausência de inquietude na espera, percebi logo que ela não tinha vindo em busca de nenhuma novidade.

E então quebrei o silêncio: - Para que eu possa, de alguma maneira, ajudá-la eu preciso saber mais da Emília. A senhora pode me dar essa chance?

Pela primeira vez ela sorriu, um sorriso doce e cansado.

- Obrigado, doutor. Começamos bem, porque o senhor é o primeiro que quer saber da Emília. Pois lhe conto que eu própria estou cansada dela, mas como descobri que fico pior quando me queixo, se o senhor não se importar, eu prefiro contar de como eu era! Porque enquanto meu velho viveu, eu fui rainha. Mas depois que ele morreu, fiquei sem ninguém com quem eu gostasse de conversar. Para piorar, meu único filho foi transferido para o Maranhão. Ele liga muitas vezes e fico no maior apuro quando ele quer que eu mostre a cara no celular e não quero que ele veja o quanto emagreci!

Ela prosseguiu:

- Aí decidi vir consultar consigo, porque gosto muito das coisas que o senhor escreve, e porque sei que tem grande vivência com pacientes com câncer, para que o senhor me diga quanto tempo acha que eu tenho a partir desse ponto, pois decidi não antecipar muito a vinda do meu filho, para não atrapalhar a vida dele, mas tenho horror da ideia de morrer sozinha!

Um grande papo jovem, aos 86 anos. Falamos de tudo, dos ipês floridos, que ainda se viam pela minha janela, de música, de livros (também era apaixonada por Júlio Cortázar e Mario Benedetti), de cinema, e da vida. Enquanto ela falava gesticulando com mãos de veias expostas e ossos salientes, fiquei pensando na sorte que teve o marido, que ao perceber que ia perder essa companhia, tratou de morrer antes dela.

A última reminiscência dele vinha carregada na bolsa: uma agenda com capa de coro marrom, chamada "Próximos compromissos". Foi uma experiência comovente desfilar pela cumplicidade das promessas de rever filmes e séries, e óperas de Puccini no YouTube, que eles deveriam assistir nas semanas seguintes e que ela, se sentindo interrompida, não tinha ânimo para assistir sozinha.

Quando a consulta se encaminhava para o final, ela pediu para usar o álcool gel. Derramou nas mãos, pediu para colocar também nas minhas, e então fez o pedido: - Agora que estamos protegidos, eu posso segurar um pouco as suas mãos? Quem pensa que câncer é a pior doença não tem ideia do que seja a solidão na velhice.

J.J. CAMARGO

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