09 DE NOVEMBRO DE 2020
CLÁUDIA LAITANO
Corta
É devastador ver alguém próximo parar de raciocinar com clareza. A primeira reação é negar. Quando finalmente torna-se impossível ignorar a realidade, vem a parte mais difícil: agir. Tirar o carro de quem sempre adorou dirigir, esconder cartões de crédito, providenciar tutela permanente. Tudo parece demasiado - e insuficiente - quando cuidar implica restringir a liberdade de alguém.
Passei por essa experiência anos atrás, quando minha mãe começou a apresentar os primeiros sinais de uma demência que não chegou a ir muito longe porque outra doença, mais rápida e silenciosa, abreviou seu sofrimento. O que eu aprendi naqueles meses em que a instituição mais sólida da família começou a entrar em colapso é que circunstâncias extremas não se resolvem com a lógica e o bom senso do dia a dia. Cada situação exigia novos cálculos e correções de rota. Ela já não era a mesma mãe, eu já não era a mesma filha.
Corta para um assunto completamente diferente - ou nem tanto.
Na quinta-feira passada, em meio ao lento processo de apuração dos votos da eleição presidencial norte-americana, Donald Trump fez um discurso histórico na Casa Branca. Histórico não pelo que disse, mas pelo que foi impedido de dizer. Em um gesto inédito, três grandes redes de notícias dos Estados Unidos - ABC, CBS e NBC -interromperam a transmissão quando Trump começou a contestar dados da apuração sem apresentar qualquer tipo de evidência ("egregious falsehoods", algo como "flagrantes inverdades", foi a expressão usada pelo The New York Times para definir a fala do presidente).
A questão de como tratar as "flagrantes inverdades" de Trump e Bolsonaro transmitidas em rede nacional estão em pauta desde que os dois assumiram. Cortar a fala de um presidente é uma decisão extrema, delicada, mas mentir ou distorcer fatos de forma grosseira durante uma pandemia ou em meio a um processo eleitoral não é algo corriqueiro.
Quando as "narrativas" valem mais do que os fatos, e o piloto entra em rota de colisão com o senso comum mais elementar, o jornalismo não estará cumprindo sua missão se agir no automático. Quem ficar confortável com procedimentos padronizados de cobertura enquanto o piromaníaco acende um fósforo atrás do outro na floresta corre o risco de tornar-se cúmplice do incêndio. A iniciativa de marcar publicações como "inconfiáveis" nas redes sociais é uma reação das empresas de tecnologia a um impasse que desafia também as grandes empresas de mídia tradicional.
Já sabemos que governar para a claque, inventar conspirações e torturar os fatos até que a mentira soe convincente compõem o kit básico de sobrevivência no poder do líder de extrema direita do século 21. Manter os microfones graciosamente liberados para que propaguem suas teorias conspiratórias e ameacem a estabilidade da democracia, sem refletir ou medir consequências, é como deixar as chaves do carro na mão de quem já não sabe dirigir - ou nunca soube.
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