segunda-feira, 23 de novembro de 2020



23 DE NOVEMBRO DE 2020
CELSO LOUREIRO CHAVES

O apagamento da música negra de concerto 

É coisa muito recente, cantores de ópera não pintarem a cara de preto para cantar o Otello de Verdi. Até 2015, se usava a maquiagem blackface como coisa normal e há inúmeros registros de cantores a atuar com a cara escurecida, desde o Francesco Tamagno da estreia, lá em 1887. Depois, década após década e cantor após cantor, o blackface se consolidou, sem um pensamento sequer sobre o ofensivo deste recurso, como a dizer que negros não poderiam estar num palco cantando um dos principais papeis da ópera verdiana. Até que alguém se deu conta que era chegada a hora de derrubar essa barreira racista da ópera e da cena.

Alex Ross, no seu livro sobre Richard Wagner, conta que foi Luranah Aldridge quem quebrou a chamada "barreira da cor" no palco de Bayreuth, a casa da dinastia Wagner, em 1896, a convite da viúva do compositor. Ainda assim, os palcos não deixaram de ser segregados, para mais e para menos, e gerações de cantoras e cantores negros passaram ao largo da música lírica. O mesmo na música de concerto. Lembro das aulas de história da música brasileira e Bruno Kiefer falando das Minas Gerais coloniais e, nela, dos choromeleiros - os que tocavam choromelas, os oboés vindos de França. Falava também dos mestres de capela, todos eles pardos, e ainda há muito a refletir sobre esta especificidade racial da profissão de músico no Brasil do século 18.

Há muitas sinfonias pelo mundo, mas poucas mulheres sinfonistas e ainda menos negros. Ou pelo menos é o que a história da música hegemônica, no seu enfoque branco e masculino, nos deixa entrever. Nos Estados Unidos, onde há mais sinfonias negras, se toca pouquíssimo as quatro sinfonias de Florence Price, negra e mulher. E também pouco as três de William Grant Still. É semelhante àquilo que acontece no Brasil com as sinfonias de compositores daqui, mas lá há a o enraizamento da questão da cor, fazendo do tocar sinfonias negras um nicho de especialistas.

Nos últimos cem anos, a música de concerto brasileira é branca e tem sido contada por brancos. A música negra de concerto sofreu um apagamento ainda à espera de reversão. É esse apagamento que torna a música negra feita por brancos, como as muitas peças do período da negritude de Francisco Mignone, tão constrangedora de ouvir. Fica óbvio, na escuta, que a música negra está sendo utilizada como mercadoria, um enfeite tristemente sacolejante para ouvintes desinformados. Enfim, vão aqui essas poucas reflexões, e rápidas, na esteira dos acontecimentos da semana passada.

CELSO LOUREIRO CHAVES

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