07 DE NOVEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA
Tia Clara
Elas vinham pela mesma calçada em que eu caminhava, só que na direção oposta. Íamos nos cruzar. Elas eram uma jovem mãe e suas duas filhas pequenas. As meninas saltitavam, cada uma pendurada em um braço da mãe, que era morena e magra e sorria. Calculei que a filha mais velha tivesse uns seis ou sete anos e a pequeninha, uns quatro ou cinco. A mais velha falava. Quando estávamos bem próximos, consegui ouvir um pedaço do que dizia:
"Eu queria ser como a tia Clara!"
A menorzinha concordou:
"Eu também!"
E a mãe arrematou, já passando por mim, já se indo embora:
"Ninguém é como a tia Clara".
Aquele rápido diálogo ficou reboando no meu cérebro. Pensei: que mulher extraordinária deve ser a tia Clara! Senti vontade de correr atrás delas e explicar:
"Vocês me desculpem, mas ouvi a conversa de vocês e fiquei curioso. Vocês podem, pelo menos me mostrar uma foto da tia Clara?"
É óbvio que a mãe deveria ter, nos arquivos do celular, uma foto da tia Clara, que, por ser tia das meninas, provavelmente era sua irmã. Quer dizer: eu conheceria a tia Clara e faria uma imagem (desculpe) clara de sua aparência. Mas talvez elas ficassem assustadas com minha abordagem, e eu não pretendia arruinar aquele lindo momento familiar, uma mãe passeando de mãos dadas com suas filhinhas.
Como será a tia Clara? Jovem como sua irmã, é evidente, mas nem tanto, porque é dona de uma personalidade formada e forte, a ponto de se transformar em modelo para as sobrinhas. Diria que uns 30 e tantos anos de idade. Mulher, já, mas ainda usufruindo do frescor da juventude, suas pernas longas e flexíveis rebrilham ao sol e ela dança com graça, é certo que dança com graça.
Se as crianças gostam tanto dela, é óbvio, também, que tia Clara é de temperamento amoroso e brando, sua voz é melodiosa e ela se esforça para compreender as pessoas. Ah, Clara parece jamais se aborrecer, dela você sempre pode ouvir uma palavra de alento, porque seus olhos d?água fitam apenas o lado positivo da vida.
Essa visão dos olhos d?água de Clara me fez estacar por um instante. Porque os olhos, Sócrates já o disse, são as janelas da alma. Os olhos de Clara, portanto, expressam uma sensualidade macia, uma malícia amorosa, uma sagacidade de quem sabe o que está fazendo debaixo do sol. Clara, definitivamente, é uma pessoa boa. Mas não a provoquem! Não a incomodem! Porque Clara saberá dar uma resposta suave e dura ao mesmo tempo. Afinal, Clara não é grosseira, jamais será grosseira, mas tem inteligência para tecer uma consideração percuciente, que pinique o âmago da alma de quem quiser aborrecê-la.
De que cor serão os cabelos de Clara? Negros, como os da irmã? Talvez, mas tenho o pressentimento de que pendem mais para o castanho e que ela os pinta de vermelho. Ou, quem sabe, de azul. Conheci uma moça que pintava os cabelos de azul-escuro nos anos 1990, e toda gente se encantava ao vê-la.
Hoje, todos se encantam com Clara, Clara debaixo de seus cabelos da cor do céu do verão na Praia Brava, Clara que tem pendurado sempre um meio sorriso nos lábios carnudos, Clara que às vezes mexe o narizinho como Samantha, a Feiticeira, Clara que vê o mundo com generosidade detrás de seus olhos d?água, Clara que inebria os adultos e deslumbra as crianças, Clara.
Foi até bom eu não ter visto a foto de Clara, sabe-se lá que magia ela não remeteria pela imagem, mirando a câmera com firmeza e ternura, comovendo e escravizando quem a vê? Não, não, melhor ficar longe de Clara e de seus encantamentos. Clara, tão bela, tão doce, tão perigosa.
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