18 DE NOVEMBRO DE 2020
MÁRIO CORSO
O espírito do cachorro-quente
Aniversário de criança é verdadeiro sem cachorro-quente? Para mim, sem ele, nenhuma festa infantil ganharia alvará. Senão, por que mais iríamos? Só ele compensa o mico.
A versão infantil é uma domesticação da versão raiz. O verdadeiro é com linguiça, envolvendo fogo direto, na grelha ou no espeto. Como tempero, apenas mostarda, acompanha pão francês novinho, casca grossa. Levado para dentro de casa, temos salsicha fervida em água. Ele ganha molho de tomate e repousa sobre um macio pão sovado.
Em todas as versões, o importante é que o pão seja um simples complemento, algo para segurar a peça-chave. A relação deve ser por princípio assimétrica. Ao pão cabe ressaltar a atração principal e proteger os dedos do calor e da gordura; ser o receptáculo dos complementos fugidios, um guardanapo comestível.
A regra de ouro é que o pão não deva esconder toda a linguiça/salsicha. Não sou desses radicais que pregam que cachorro-quente de salsicha picada com molho seja crime inafiançável. Apenas acho lamentável. É um ataque à alma do cachorro-quentismo. Sinto-me menos humilhado comendo um exemplar vegetariano com salsicha de soja.
Existe outra deturpação problemática: o cachorro-quente refeição. Usa-se do conceito para empilhar qualquer absurdo, incluindo salada (por quê?), batata palha, ervilha, milho, queijo ralado, purê de batatas (sim, eu vi com meus olhos), enfim, um desafio de equilíbrio. Para não desandar, usa-se maionese como argamassa.
Você tem que encarar sem talheres. Existe ali uma felicidade primal em não saber como comer o bicho e a certeza de que, mesmo lambuzado, sairá vencedor. O cachorro-quente refeição talvez seja um dos raros casos em que a gastronomia encontra o esporte. Geralmente a contenda é em pé, os mais habilidosos sabem da inclinação e da abertura certa das pernas. Não dá para encarar o desafio com qualquer roupa, recomenda-se jeans escuros, desses que é só espanar o que escorre.
Como a empreitada é um pantagruelismo pocket, talvez seja um reencontro com o lado rústico do cachorro-quente original, mas em outro patamar. Alguns maîtres não concordam, dizem que ele contraria a essência de ser uma refeição leve, ligeira e festiva.
Para os psicanalistas, o cachorro-quente refeição é uma metáfora do circuito dos traumas. Você se encanta com aquela potência calórica. Acredita que será um vencedor e, na primeira mordida, é como se explodisse uma granada de ketchup no rosto. Então você esquece o evento. Um mês depois, pensa que agora pode, e de novo maionese no cabelo.
Esses dias, numa festa, vi um garoto entrar na cozinha. Partiu um pão, colocou apenas o molho e saiu faceiro. Fez um cachorro-quente conjunto vazio. Então aprendi que estava errado. Cachorro-quente é uma palavra-festa, uma palavra-sonho, cada um preenche o seu como quiser.
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