sábado, 14 de novembro de 2020


14 DE NOVEMBRO DE 2020
JULIA DANTAS

AS PALAVRAS E SEUS SIGNIFICADOS 

Há uma cientista, Monica Gagliano, que espera provar que as plantas são capazes de aprender. Para isso, criou um mecanismo que provoca uma pequena queda em dezenas de vasos de Mimosa pudica, cujas folhas se fecham em resposta a ameaças. Ela mostrou que, após algumas quedas, as folhas param de se fechar, como se tivessem aprendido que aquilo não era um perigo.

A pesquisa foi muito mal recebida. Mas seus colegas botânicos não questionavam o método nem os resultados: eles criticavam o uso da palavra "aprendizagem" para falar de não animais. O melhor, segundo eles, seria dizer que as plantas são capazes de "habituação".

O debate pode parecer tolo para quem acha que não importam as palavras, só os fatos. Mas conceder que as plantas podem aprender nos confrontaria com questões maiores. O ponto é que talvez não queiramos acreditar que as plantas são seres complexos como nós.

Toda cultura se constrói não sobre fatos, mas sobre discursos. Uma constituição não é mais que um punhado de palavras para interferir na realidade, assim como uma sentença judicial.

Na mesma semana em que veio à tona o vídeo dos abusos verbais sofridos por Mariana Ferrer durante o julgamento de seu estuprador, foi noticiada a alteração de uma sentença no Estado de São Paulo. Trata-se do caso de um homem que havia sido condenado por estupro de vulnerável pelos atos que praticou contra a sobrinha de oito anos, mas um juiz trocou a condenação para "importunação sexual".

Essa mudança faz toda a diferença: passa-se da pena de reclusão de 18 anos para uma de um ano em regime aberto, substituindo a privação de liberdade pela prestação de serviços. A nova sentença descreve os atos e conclui que eles não são tão graves por não ter havido penetração. Eis o texto: "Fazer a vítima se sentar em seu colo e movimentá-la para cima a fim de se esfregar nela e apertar os seus seios por óbvio, não possuem tal gravidade".

Talvez não queiramos, como sociedade, acreditar que um tio seja capaz de estuprar a própria sobrinha de oito anos. Mas ele o fez, e outro homem considerou que é apenas uma importunação sexual, ou seja, o mesmo delito de quando alguém se masturba em público. Para certo segmento da Justiça brasileira, se um homem se masturba num parque ou se ele aperta o peito e esfrega a região genital no corpo de uma criança de oito anos, tanto faz.

Não vou generalizar. Sei bem o quanto há de pessoas no sistema judiciário que lutam por dignidade no tratamento a mulheres. Mas os casos de Mariana Ferrer e da menina de oito anos não são exceções. Estima-se que 90% dos crimes sexuais praticados no Brasil nem sejam denunciados.

Houve um amplo debate a respeito do termo "estupro culposo", que ganhou as redes, mas não consta nos autos do processo. Ele é revelador. Talvez queiramos, como sociedade, acreditar que, se um homem se aproveita de uma mulher inconsciente, isso é sexo, e não estupro. Mas não é. É só estupro mesmo. As palavras que usamos importam. Tanto Mariana Ferrer quanto a menina de oito anos sabem disso, e elas tomaram a palavra para contar suas histórias. O mínimo que nós devemos a elas é fazer coro aos seus gritos por justiça.

JULIA DANTAS

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