24 DE NOVEMBRO DE 2020
NÍLSON SOUZA
A realidade negada
Se o mamute pudesse filosofar - escreveu o paulista Jerônimo Monteiro no admirável preâmbulo do quarto volume da coleção Conquistas Humanas -, diria:
- Esse infeliz animalzinho não tardará a desaparecer da superfície da Terra!
O elefante peludo referia-se ao homem primitivo, encurralado em sua caverna pelo medo que tinha dos outros animais, todos maiores, mais fortes, mais ágeis, com garras e dentes afiados para os embates da sobrevivência.
No entanto, conta o talentoso escriba, aquele serzinho indefeso tinha algo que nenhum outro animal jamais teria: um cérebro onde dormiam possibilidades e promessas tão extraordinárias como não se poderia conceber. E por aí o nosso pioneiro da ficção científica explica a evolução do animal humano, que observava a realidade, pensava, tirava conclusões, planejava, percebia que a vida em grupo lhe dava mais segurança e que, com a sua capacidade criativa, podia conquistar todos os recursos que a natureza aparentemente lhe negara.
A palavra foi sua primeira e mais poderosa arma. Para viver em tribos, ele precisou se comunicar, dar nome aos objetos, identificar seus semelhantes, alertar para o perigo e apontar o esconderijo da caça. Azar do mamute, que acabou extinto antes de se tornar filósofo.
Mas nós, a espécie fabuladora, nos tornamos seres comunicativos, pensadores, transformadores, dominadores, quase divindades. Inventamos armas destrutivas, redesenhamos o planeta, fomos ao espaço, pisamos na Lua e mergulhamos no interior das células para desvendar os enigmas da vida. Porém, toda vez que tropeçamos na nossa própria arrogância, como nos episódios de guerras, barbáries e atrocidades que já protagonizamos ao longo da História, corremos o risco de involuir como seres racionais e civilizados.
Agora mesmo, juntamente com o vírus letal que nos atemoriza e desafia, ressurge um fenômeno com potencial para nos devolver às cavernas pré-históricas: a negação da realidade. Os negacionistas - da ciência, da democracia, do meio ambiente, da justiça e dos direitos humanos - parecem decididos a cumprir a profecia do mamute.
Vade retro, ignorância!
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