domingo, 8 de novembro de 2020


07 DE NOVEMBRO DE 2020
JJ CAMARGO

Na última Feira do Livro, que não chamávamos de presencial porque ninguém imaginaria que pudesse ser de outro jeito, participei de uma sessão de autógrafos, uma experiência sempre boa quando o nosso ego anda cambaleante. Findos os abraços, a que todos se ofereciam porque ninguém se sentia contagioso, subi a ladeira em direção ao estacionamento, carregando duas frases que mexeram comigo.

Um senhor, que se apresentou como professor, perguntou: "O senhor se considera um escritor?". E um adolescente de cara limpa e sorriso bonito se encabulou para dizer: "Eu quero ser como tu!".

Ao primeiro respondi que ele não precisava se constranger em pensar que não, porque há uma forte corrente que considera o cronista como um fofoqueiro literário e, numa sociedade hierarquizada, como o soldado raso do exército de escritores. Ele respondeu que não era isso que ele queria dizer, mas era. E eu, preocupado em preservar a autoestima, vazei.

Alonguei a conversa com o jovem, pois prefiro plagiar a Zilda Arns, que recomendava investir nas crianças porque nós, os adultos, não temos solução. Além disso, havia uma curiosidade tão grande, que o garoto acelerava as palavras para perguntar o que precisava saber, entre pedidos de desculpas por tomar meu tempo que supunha tão precioso. A nossa relação fluiu quando confessei que eu só precisava de um saco da pipoca que enchia a praça do seu cheiro bom, e que naquela tarde não tinha mais nada para fazer.

Foi muito bom transmitir um estímulo ao prazer da leitura, que tem sido para mim um instrumento de devaneio, de prazer e de fuga, nesta vida tão atribulada que, por vocação, necessidade ou angústia, escolhi viver. Tratei de convencê-lo de que, de muito ler, estamos a um passo de escrever, e que às vezes a ideia surge de repente, da vontade súbita e incontrolável de recontar o que lemos. Havia uma doce cumplicidade no olho dele, e quando confessei que, como um leitor compulsivo, tenho tido muitas manhãs sonolentas, vitimadas por noites alongadas em leituras que não consegui interromper, ele lamentou que a mãe não estivesse ali para entender "que isso não acontecia só com ele". Admiti que o compromisso, inicialmente assustador, de escrever uma crônica semanal trouxe um benefício que não imaginava: passei a ter um olhar mais atento ao meu redor. Trabalhando com gente, e muitas vezes com gente sofrida, a missão tinha ficado mais fácil.

- Posso te fazer uma última pergunta, agora que a pipoca terminou? Quando tu decidiste começar a escrever?

Disse que não lembrava, mas tinha uma inveja danada da confissão que o grande Fernando Sabino fizera num especial da TV, comemorativo aos seus 80 anos: na sua puberdade, ao relatar a um amigo uma história que havia lido em algum lugar, resolvera mudar-lhe o final para um outro que lhe parecera mais adequado. Nesse dia ele se defrontou com sua verdadeira vocação, a do contador de histórias. E que quem escreve, independentemente de seu talento, no fundo é isso: um contador de histórias.

Garantido um certo ar de intimidade, meio constrangido, ele retirou da sacola um segundo livro e perguntou se eu não me incomodava de dar mais um autógrafo. E escrevi: "Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história" (Hannah Arendt). Ele leu a frase mais de uma vez, agradeceu, ajeitou a mochila e caminhou rápido em direção à rua Sete de Setembro, sem olhar para trás. Talvez tenha mudado de ideia e decidido ser como a Hannah Arendt.

JJ CAMARGO

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