sábado, 5 de setembro de 2020



05 DE SETEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Como assim, quem dera ser um peixe?

Eu odeio a música quem dera ser um peixe. E, olha, não sou homem de ódios. Não odeio, por exemplo, mondongo - tem muita gente que odeia mondongo. Moela seria, talvez, algo detestável, mas, não, não detesto a moela, apenas a desprezo olimpicamente.

Meu velho amigo Ricardo Carle gostava de moela. Uma noite, nós estávamos no Jazz Café, histórico bar do Dirceu Russi, ali na Fernando Gomes. Estávamos eu, ele e a Mariana Bertolucci. Aí o Ricardo pediu um prato de moela. Fiz uma careta:

"Moela?" E ele: "Moela!"

Tudo bem, veio a moela. O Ricardo ficou comendo e, de repente, a Mariana olhou para ele e comentou:

"Tu estás com uma cara estranha..."

Enquanto mastigava, ele rosnou, que o Ricardo rosnava:

"Grunf".

Olhei para ele e, de fato, havia algo diferente em seu rosto. Então, a Mariana gritou:

"Os teus lábios!"

Foi quando percebi: os lábios do Ricardo estavam inchando bem na nossa frente, estavam já maiores do que gomos de bergamota poncã e aumentando cada vez mais.

"Meus lábios?", murmurou o Ricardo. Ao que, a Mariana vasculhou a bolsa e das suas profundezas extraiu um espelhinho: "Olha!"

Ele se mirou e viu: os lábios estavam enormes, vermelhos, brilhantes.

"É alergia!", concluí. "Tu tens alergia a moela!"

O Ricardo se examinou por mais alguns segundos no espelhinho e concordou:

"Acho que é isso mesmo. Alergia".

Dito isso, pescou outra moela do prato, levou à boca e começou a mastigar. Em seguida, virou-se para o balcão e gritou:

"Dirceu! Manda alguém trazer mais um chope!"

Não seria uma alergiazinha que tiraria a sede do Ricardo.

Pois nem essa agressão ao meu amigo fez com que passasse a odiar a moela. Não quero vê-la na minha frente, isso sim, mas odiá-la, não a odeio.

Já a música quem dera ser um peixe odeio com todas as minhas forças. Sei que não se chama quem dera ser um peixe, o nome certo é Borbulhas de Amor. Pior ainda. Nome tão brega quanto a música.

O caso é que esse refrão maldito ficou colado em meu cérebro durante DOIS DIAS INTEIROS dessa semana, sem que o pudesse esquecer. Mesmo dormindo sonhava com "quem dera ser um peixe, para em teu límpido aquário mergulhar, fazer borbulhas de amor pra te encantar". Acordava no meio da noite pensando nesse verso mole e com o dia claro o verso mole ainda me ribombava na cabeça.

Essa música era cantada pelo Fagner, a letra foi composta pelo Ferreira Gullar. O Fagner uma vez disse: "Eu sou o melhor cantor do Brasil". Não é, né?

Cara exibido.

Tenho certa prevenção contra o Fagner, porque ele brigou com o Belchior. Os dois fizeram juntos grandes músicas, entre elas a maravilhosa Velas do Mucuripe, mas depois se tornaram desafetos. Por quê? Não sei. Suspeito de que haja alguma bela dama envolvida.

Até hoje o Fagner fala mal do Belchior, o que sempre será uma injustiça. O Belchior era uma pessoa boa, um coração puro demais para este mundo cínico. Não foi à toa que se tornou uma espécie de ermitão itinerante, no fim da vida. Ele não suportava mais a lógica da existência. Tinha, inclusive, avisado que faria assim, ao cantar: "Se você vier me perguntar por onde andei, no tempo em que você sonhava, de olhos abertos lhe direi: amigo, eu me desesperava".

Belchior se desesperou porque não aceitava viver num mundo que não fosse simples e bom como era o seu coração. Não se pode falar mal dele, portanto.

Mas não é só por isso que odeio quem dera ser um peixe. A música é cafona mesmo. Quem é que vai querer ser um peixe? Bicho mais sem graça. Gosto de comer peixes, óbvio, mas me transformar em um deles? Essa, não.

A minha amiga Deinha Guahnon tem um peixe. Ele é minúsculo, do tamanho do dedão direito do pé da Ísis Valverde, que é um dedão módico. Ele fica nadando dentro de um aquário pouco maior do que uma caixa de sapatos. Ele não tem nenhuma companhia, aquele triste peixe. Passa os dias e as noites nadando 28 centímetros para um lado, 28 centímetros para o outro. Quando vou à casa da Deinha, olho para aquele peixe e proponho:

"Por que não solta o coitado nas águas do Guaíba, para ele viver em liberdade, entre seus amigos com guelras?"

"Ele é feliz aqui", responde a Deinha.

Como é que ela sabe???

Depois dessas conversas, sempre examino com mais cuidado o peixe e não noto nele nenhum traço de alegria, de satisfação, nada. Então, não me venham com essa ideia de ser peixe.

Mas a coisa pode piorar. É que li uma entrevista do Ferreira Gullar explicando que o peixe da letra não é um peixe: trata-se de uma alegoria para falar do órgão sexual masculino. Ou seja: quem canta essa música canta "quem dera ser um pênis".

Por favor!

E eu dois dias com esse troço me corroendo as células cinzentas.

Eu odeio a música quem dera ser um peixe.
DAVID COIMBRA

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