sábado, 19 de setembro de 2020

19 DE SETEMBRO DE 2020

MARTHA MEDEIROS

Vai, amor 

É difícil, mas essa hora sempre chega: a de abandonar, deixar partir. Quando começa, confiamos que tudo será cristalino e empolgante. Fazemos o nosso melhor e acreditamos que nada, nenhum outro irá superá-lo. As ideias deslizam, o olhar brilha, mal controlamos o sorriso no rosto: está dando certo. Está funcionando. Você não sabe direito aonde irá chegar, mas já sente o imenso prazer em debulhar suas emoções sem pudor, dividir suas reflexões, abusar da argúcia, do humor, e se congratula: está correndo melhor do que o esperado.

Aí acontece.

De uma hora para outra, a magia embesta de falhar. Acho que foi quando você se levantou para buscar um copo d´água na cozinha. Ou talvez você não devesse ter tido o ímpeto de interromper o que está fazendo para descer até a garagem, só porque havia esquecido a máscara no console do carro. Você volta para o apartamento e ele não parece mais o mesmo. Como é que uma impressão muda tão rápido? Você não deveria ter se mexido, saído do lugar, mas ninguém pode ficar refém de uma atenção plena. Telefones tocam, uma amiga chama, alguém distrai você com outro assunto, e quando você tenta retomar de onde estava, ele já não se parece com o jeito que era.

A noite cai e você vai dormir, descansar. É provável que tenha sido apenas um pressentimento que sumirá ao amanhecer.

Mas o dia amanhece, e a realidade se sobrepõe às ilusões. Nada se mantém com o frescor do início, você já deveria saber. É mais uma relação que, como todas, dará trabalho. Você usará uma palavra que não caiu bem e terá que voltar atrás. Você insistirá, teimosa, numa ideia que não será bem compreendida. Você se sentirá desestimulada e cogitará não levar a história adiante, pensa em começar algo totalmente diferente, mas depois repensa: já chegou até aqui, investiu tanto tempo, vai dar tudo certo no final. E insiste mais um pouco.

Você gostaria que fosse perfeito, mas a perfeição é uma medida só almejada pelos tolos, você sabe perfeitamente disso, você, inclusive, declara isso aos sete ventos, por que então essa insistência em tentar corrigir até os detalhes insignificantes? Ele se tornou quem é, por mais que você ainda tente mudá-lo. E ele precisa ir ao encontro de outros olhos, você não pode mais retê-lo. Acabou. Aceite. Deixe-o partir.

É mais ou menos assim, caro leitor, que me relaciono com cada texto que escrevo. Chega a hora em que é preciso abandoná-lo, ou perderei o prazo de entrega para o jornal. Não é fácil, sempre fica no ar a sensação de que eu poderia ter me esforçado mais. E só no fim de semana seguinte, quando o reencontro alheio a mim, em meio a outros, é que descubro onde foi que eu errei.

MARTHA MEDEIROS

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