QUANDO UM LÍDER VIRA CHEFE
Havia um líder. E havia os liderados. Era bom haver um líder. Todos podiam ficar tranquilos, afinal, o líder tomaria decisões e ações.
Anos se passaram. O líder, cada vez mais chefe do que líder, foi ganhando terreno. Decidia tudo. Já não solicitava opiniões. Apenas comunicava suas ações. Os antigos liderados, que agora eram calados pelos gritos do antigo líder, se encolhiam.
As reuniões eram simbólicas. Qualquer um que ousasse ter pensamento, gesto, atitude contrária às decisões do chefe era deixados de lado ou expulso, afastado. Havia medo, por um lado. Havia os que o seguiam e adoravam.
O chefe se tornou emocionalmente descontrolado. Gritava, chorava e saia das reuniões batendo os tamancos se alguém ousasse ter qualquer opinião.
Até o dia em que falhou publicamente. Houve erros e falhas anteriores, mas tudo encoberto por seus pares. Afinal, era um homem bom, trabalhador, honesto e tudo fazia para deixar uma herança sagrada ao futuro.
Falhou, mas não reconheceu. O conselho dos anciãos resolveu dar um basta. Havia tanto desconforto. Tantas pessoas silenciadas querendo se manifestar. Tanto medo, por nada.
Seria necessário enfrentar a fera. Que, afinal, era um querido de todos. Carismático, amado, trabalhador incansável. Haveria de entender a conversa amigável.
Nada feito.
Atrás das portas e janelas, ouviu um deles comentando, enquanto esperavam sua chegada, que seria melhor ajuda-lo a aprender o autocontrole. Quais seriam as medidas adequadas?
Iriam conversar. Quem sabe voltasse a ser um líder, por todos amado? Furioso só de pensar que não concordavam com ele, entrou na sala e gritou: - Vou-me embora. Não houve encontro. Foi grande a confusão. Bem, se assim ele decidiu, foi acatado.
Mas não era bem essa a expectativa do ex-líder, ex-chefe. Talvez esperasse que de novo se rendessem e continuassem a se submeter às suas ações, decisões. Era mais fácil. Sem preocupações. Ele, apenas ele, se preocuparia com tudo. Aos outros caberia apenas concordar.
A pandemia chegou. Tudo mudou. Quem estava longe ficou perto, virtual. Quem estava perto ficou longe, virtual. Sem chefe, tiveram que pensar, conversar, decidir.
Democracia participativa significa o poder do povo, não da chefia. Participar não é só votar, embora o voto seja importante até demais. Participar é dar palpite, sempre que quiser, é ouvir e ser ouvido, ter liberdade para falar e se manifestar. Ser acolhido, compreendido, incluído, decidir junto.
Quando um líder vira chefe, só quer mandar. Deixa de ouvir e perde a capacidade de liderar.
Quem ficou muito calado pouco a pouco reaprende a falar. Gagueja, treme, mas começa a murmurar.
Se o povo se empodera, não há chefe que seja fera. Ou se transforma em líder, capaz de unir, ouvir, acolher, acatar, reger uma orquestra harmoniosa, com música de fazer chover onde há incêndios, capaz de encontrar curas para doenças, equidade e respeito às diferenças, menos mortes, menos crimes, mais amor e menos dor; ou desiste e procura se autorregenerar.
Como restaurar a tessitura social quando rompida? Como ajuntar os rejuntes das esquinas da trama sagrada da vida?
Mãos em prece
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