sábado, 26 de setembro de 2020


26 DE SETEMBRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

CUPIDEZ

 Será que nesta palavra o Cupido tem vez? Tem sim, o filhote de Vênus que faz corpos e mentes se moverem possuídos pelo desejo; seu nome é irmão da palavra latina cupido, desejo ou inveja, e de cupiditas, em forma mais violenta, ambição ou cobiça. Nossa palavra cupidez carrega estes significados e também algo da cultura herdada da Roma antiga, cujas elites, desde o final da República, foram profundamente influenciadas pelo epicurismo e pelo estoicismo. Vista por estas filosofias éticas de origem grega, a cupidez afasta-se do amor e aparece como o cacoete que submete aos homens escravos das ambições.

Para a filosofia de Epicuro (341-270 a.C.) e para os estoicos, a felicidade era alcançada pelo controle das paixões que perturbam a serenidade do espírito. Contra os sofrimentos provocados pelos desejos e pelos acidentes da vida, celebravam o ideal de ataraxia - a impassibilidade, distanciamento e controle dos impulsos pela prudência e pela temperança. Em Roma, a principal voz desta ética foi Tito Lucrécio Caro (c. 99-55 a.C.), poeta e filósofo contemporâneo de Cícero (106-43 a.C.) e Júlio César (99-44 a.C.), autor do poema filosófico De rerum natura (Sobre a natureza das coisas), em que expõe o atomismo como ciência capaz de dissipar os temores das superstições e, assim, abrir caminho para a felicidade. Lucrécio via com cautela as ambições políticas, e alude à "cega cupidez de honras" (honorem caeca cupido, 3, 59), frase que reverbera Cícero, que fala da "cupidez, cega senhora da alma" (caeca dominatrix animi cupiditas, Inv., 1, 2). Estavam atentos, ambos, para um dos grandes males que degradam a história, a desmedida ambição de homens de escassa moralidade.

Há nisso um paradoxo, pois o desejo e a ambição são também necessários e causa de prazeres, de nossa perpetuação como espécie e do desenvolvimento que nos levou a compor sinfonias e ir à Lua; trata-se, porém, de compreender sua razão e medida, antes que se tornem pulsões deseducadas, sem parâmetros. É assim que a ambição aparece na ideologia do empreendedorismo, como virtude soberana, do mesmo modo que a cupidez anima os insensatos em sua cega busca de riquezas e honras. Quem paga por isso é o mundo e a sociedade e, no tempo e formas devidas, os próprios cúpidos sujeitos.

É para saciar a cega ambição de bens e honras que homens sem qualidades lutam pelo poder, na academia ou na política, por todos os meios, da demagogia à corrupção, tramoias e golpes. Com esta penúria moral, nada têm a oferecer, especialmente quando abrem mão da legitimidade e do saber cooperativo propiciados pela democracia; é apenas nesta que um Eros eficiente pode agregar e realizar ambições pelo bem comum. A cegueira revela-se ainda na dificuldade desses sujeitos em compreender sua improdutiva estupidez, e suporem que logo será esquecida a gravidade trágica dos atos em que sucumbem um homem e valores nobres da sociedade.

Conquanto vendado e disparando setas errantes, o Cupido tem certamente dons mais doces a nos oferecer, o prêmio para quem sabe reconhecer quais são os gratos desejos que podem nos unir.

FRANCISCO MARSHALL

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