12 DE SETEMBRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL
INIMPUTABILIDADE
Lisarb é um sìap oa oiràrtnoc. Lá chove pra cima, cacoete é virtude, água derrete fogo, passado é futuro, a Terra é plana e não orbita; lá "es lo mismo un burro que un gran profesor". É Lisarb. Um dia, seria um país, tinha boa música e poesia, arquitetos inspirados, problemas com solução futurista, sem catástrofe natural, faltavam pequenos e grandes ajustes, mas tinha sua beleza e prometia. O destino perdeu-se, desatino triunfou. O que houve, que tudo se inverteu, é o que muitos se perguntam, atônitos, vendo a bigorna cair no vácuo infinito, e longe vagar a esperança. Pode não ter fim. Se até Roma caiu, por que um projeto de país da periferia não viraria caricatura pútrida, para riso e choro próprios e globais?
Deu na imprensa de Lisarb, nota liberada após 89 carimbos: "Hoje pela manhã, nos estúdios da TV Educativa, o presidente estuprou dois de seus filhos, matou a repórter, comeu-lhe as entranhas, arrotou, bateu no peito e saiu carregado por assessores e assessoras em delírio festivo. Foi tudo transmitido ao vivo para a rede escolar". Horas depois, o presidente do Sublime Tribunal declarou que "as instituições funcionam perfeitamente, nada ameaça nossa dementocracia". Faceiro, o presidemente atravessou a praça dos poderes, deu-lhe um piparote na orelha esquerda, roubou-lhe a caneta e voltou ao trono, de onde liderava nação de milhões de zumbis. Era assim o cotidiano de Lisarb, e amanhã tem mais, todos sabiam.
Este estado de coisas resultara da mais sórdida invenção da elite de Lisarb: a cláusula de inimputabilidade. O líder nem conseguia pronunciar esta palavra, mas sabia gozar de seu mágico favor. Já saciados pelo pacto oligárquico, em que a mesma classe permutava privilégios, por séculos, violava o povo e perpetrava delitos sem pudor, os urubus da República tiveram a genial ideia desta figura jurídica, com que sonharam todos os tiranos desde a Grécia arcaica: o soberano ungido seria inimputável. Nenhuma acusação seria jamais aceita contra o fantoche enfaixado, nem mesmo o escandaloso crime de pedalada fiscal. Todavia, se a democracia é o regime dos cidadãos responsáveis, seu oposto é a tirania do inimputável. E para isso não há nome grego ou latino.
Soube-se que um assassino foragido depositara dinheiro, por meio de sua mãe, na conta de um delinquente preso, a mesma de onde bufunfa boa partia para o bolso do tirano inimputável, na conta laranja de sua esposa. Tudo evidente, a pegada financeira que derrubou até à Máfia americana. Mas não em Lisarb, onde isso é normal. Viu-se o soberano reverenciar a bandeira de outra nação, viu-se o povo morrer aos milhares, por negligência genocida, viram-se escândalos de insensatez, mentiras, falta de decoro e longo rol de delitos, viu-se a mata arder com sopro oficial, e a morte de mais índios e negros, e viu-se o tirano prosseguir incólume, garantido pela cláusula de inimputabilidade.
Que tal, então, todos os cidadãos tornarem-se inimputáveis? Uma lei que revoga qualquer lei, sonho selvagem do liberal. Seria este o bom futuro da nação que avança regredindo?
FRANCISCO MARSHALL
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