quarta-feira, 23 de setembro de 2020


23 DE SETEMBRO DE 2020
PEDRO GONZAGA

Pela manhã 

Saio cedo da cama para dar à casa o conforto do café. Os móveis também precisam de uma força maior que a do sol para acordar. Todos têm dormido pouco, exauridos pelo uso anormal: chora o sofá de dor nas costas, vacilam as cadeiras em suas quatro pernas a cada hora menos bronzeadas.

Evito o hábito egoísta dos fones. Os copos e as xícaras suportam a sujeira, mas não o silêncio quando podiam ouvir Debussy ou Coltrane. Os garfos, mas especialmente as facas admiram meu bom gosto. Sei disso porque me lançam piscadelas inoxidáveis. Com as colheres, no entanto, há muito vi fracassar qualquer possibilidade de comunicação. Um antigo manual afirma que, por sua natureza a um só tempo côncava e convexa, própria das lentes e dos espelhos, as colheres servem apenas para aumentar ou diminuir o que já existe. Isto explica muita coisa.

Apago a luz do banheiro, costumeiro farol para a gata que me olha com sua potente visão e entende, compadecida, ser o hábito a única forma de natureza acessível aos humanos. Gostaria de acreditar que me perdoa a tolice, mas já não se ocupa de mim, grudada à janela, estalando o maxilar a sonhar, é provável, em ter nas presas a pomba ousada e inconveniente, que, francamente, não traz paz a ninguém.

Tomo a segunda dose de café, cogito ler as notícias, informar-se sobre eventos passados ao começo de uma nova manhã revela a precariedade de nosso senso de ordem, também a comovedora batalha a ser perdida contra o caos. Donde a alienação talvez seja a única maneira de viver o instante, e escrever, de certo modo, a possibilidade mais justa de reabitar a alienação dos instantes perdidos.

Nos tempos em que fui músico, muitas vezes parávamos o ônibus em algum posto ao raiar do sol, no meio de lugar nenhum, atrás de um café salvador. Guardo uma imagem que não sei datar nem localizar, mas dormiam ainda os caminhões e talvez o mundo todo para além da lanchonete. Era um descampado, disso tenho certeza, e os dedos lembram de um copo de plástico segurado pelo aro menos pelante. Eu era jovem e havia muito tempo, que gastei sem perceber, e a esta altura não sei se isso foi bom ou ruim, ou apenas o que acontece a todos os viventes, mas quero crer que há neste fragmento de alienação, no qual a eternidade foi sensível numa centelha tão logo extinta, uma partícula que ecoa na paciência dos móveis, no descaso dos felinos, no gole acre do café.

PEDRO GONZAGA

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