quarta-feira, 16 de setembro de 2020



12 DE SETEMBRO DE 2020
O PRAZER DAS PALAVRAS

Dúvidas da pandemia

Entre as inúmeras alterações que esta pandemia trouxe para nossa vida, as que mais afetaram esta coluna foram as aulas à distância (é assim mesmo, sabidinho - com acento de crase). Já explico. Com toda a família confinada, pais e mães, querendo ou não, vêm acompanhando as aulas dos filhos; de certa forma, voltam a ser alunos, mas com a grande desvantagem de não poder falar com o professor para resolver as dúvidas que as aulas acabam despertando. Não sei como se arranjam com as outras disciplinas, mas, no que tange ao Português, uma das saídas é sempre escrever para este seu criado. Abaixo, caro leitor, você verá algumas das muitas consultas que me enviaram - e o curioso é que em quase todas se percebe um sentimento prévio de desconfiança com relação ao que o professor ensinou - totalmente injustificado, como veremos. Para evitar constrangimentos, não dou o nome nem a cidade.

1 - "Minha filha está aprendendo o alfabeto e ouvi a professora falar na letra H. Faz muitos anos que estudei isso, mas fiquei em dúvida: H conta como letra mesmo?".

Resposta - É claro que o H é uma letra, computada entre as 26 letras que compõem o nosso alfabeto (é só contar). Por isso, ela merece ter uma seção própria em todos os dicionários, que fica depois da seção do G e antes da seção do I; além disso, dizemos "esta palavra se escreve com a letra H", "a velha máquina de escrever não tinha a letra H", "procura na enciclopédia, no volume da letra H", e assim por diante. O que ela não tem é som, mas isso já são outros quinhentos.

2 - "Sempre que começa a aula da minha filha, aparece uma tela em que está escrito "Bom dia, turma!". Achei estranho e fui conferir no dicionário Houaiss. Lá está escrito bom-dia, com hífen. No Vocabulário Ortográfico, da Academia, idem. Como a professora é muito boa, resolvi escrever para o senhor antes de reclamar"

Resposta - Caro amigo, os dicionários devem ser lidos com atenção aos mínimos detalhes. Nos dicionários, o bom-dia hifenizado vem assinalado com a abreviatura s.m., ou seja, trata-se do substantivo (que tem, inclusive, o plural bons-dias): "Ela me recebeu com um sonoro bom-dia". Todavia, na saudação que aparece na tela do computador, temos uma simples expressão e não um vocábulo composto (que exigiria o hífen): "Bom dia, turma!" - da mesma forma que "Bom jantar!", "Boas festas!", "Boas férias!" ou "Bons sonhos!".

3 - "Sigo uma regra infalível: mal está para bem assim como mau está para bom. Por isso, bom humor, mas mau humor; bem-estar, mas mal-estar. Porém, a professora do meu filho deu como certa a frase "O mal é a falta de chuva". Não concordo, pois o contrário seria "O bom é falta de chuva". Posso entrar com um recurso?".

Resposta - Não, amigo, não pode. Como era de esperar, a professora está correta. Aqui entra em cena um terceiro, um personagem que escapa à tal regra infalível: trata-se do substantivo mal ("doença, desgraça"), que tem o plural males: "Até o séc. 19, o câncer era um mal incurável"; "Há males que vêm para o bem". Logo, "O mal é a falta de chuva".

4 - "O professor estava dando um sermão contra o bullying nas redes sociais e falou em lacração, palavra que, não sei se o senhor sabe, os jovens usam muito quando se dão bem ou arrasam em alguma discussão. Fiquei pensando: se vem de lacre, não deveria ser lacreação? Se estou viajando, pode me dizer."

Resposta - Conheço bem o termo, sim - tenho uma filha adolescente. E vou ser franco: você está realmente "viajando". Colocar o lacre é lacrar. Ora, os substantivos terminados em -ção derivam de verbos: cassar, cassação; datar, datação; lacrar, lacração. Para que existisse "lacreação", deveria existir, antes, o verbo "lacrear".

5 - "Passei pelo quarto do filho e ouvi, no computador, o professor avisar: "Depois que vocês virem o filme, podem preencher o questionário". Não é do verbo ver que ele estava falando? Não deveria ser verem? Virem não é do verbo vir?"

Resposta - Prezada leitora: vou trocar o verbo ver por fazer, para facilitar a explicação (ambos são irregulares e se comportam de forma idêntica nesta construção): "Depois que vocês fizerem o trabalho". Como podemos perceber, nessa frase o verbo fazer está no futuro do subjuntivo; se colocarmos em seu lugar o verbo ver, a conjugação correta é mesmo "depois que virem o filme" - que é o fut. subj. de ver: quando eu vir, quando tu vires, quando você vir.

CLÁUDIO MORENO

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