19 DE SETEMBRO DE 2020
Lineu tinha a integridade que está faltando no Brasil
Eternizado como o Lineu do seriado "A Grande Família", vai receber o Troféu Oscarito no Festival de Cinema de Gramado, que começou nesta sexta-feira e vai até o dia 26
De 2001 a 2014, Marco Nanini foi o paizão (ou o "popozão") Lineu de A Grande Família. Era um personagem sério e centrado, mas de coração enorme. Em 2019, chegou aos cinemas Greta, dirigido por Armando Praça e estrelado por Nanini. Em uma atuação visceral e com cenas delicadas de sexo, o ator foi bastante elogiado por esse drama sobre um enfermeiro gay e solitário. Até o início de setembro, Nanini estava no ar em Vale a Pena Ver de Novo pela novela Êta Mundo Bom! (2016), no duplo papel de Pancrácio e Pandolfo.
Agora, aos 72 anos, vai receber o Troféu Oscarito no Festival de Cinema de Gramado. A homenagem é entregue a grandes nomes do cinema nacional. Seja em filmes, na televisão ou no teatro, Nanini tem uma carreira exitosa, com mais de 50 anos. Em entrevista a ZH, ele falou sobre seu trabalho, sobre A Grande Família, sobre a pandemia e sobre o estado das coisas no país.
Você vai receber o Troféu Oscarito no Festival de Cinema de Gramado. O que significa para você esse reconhecimento?
É muito interessante. Esse troféu vem de um festival muitíssimo importante, que nos dá muita visibilidade. Já fui algumas vezes ao festival, fiquei meio à parte, apenas observando como era. Agora estou me sentindo bastante honrado e homenageado com esse troféu.
Até recentemente, Êta Mundo Bom! estava no ar pelo Vale a Pena Ver de Novo. Na novela, você se destacou vivendo Pancrácio. Como foi fazer um personagem tão querido, com tantos recursos e disfarces?
O personagem me foi oferecido pelo Walcyr Carrasco logo após o término de A Grande Família. Eu li a sinopse e gostei do papel. Só pedi algumas coisas técnicas para poder desenvolver o personagem. Cada disfarce do Pancrácio era gravado num dia inteiro. Só ele. Senão, tinha que ficar mudando de maquiagem. Comecei a interpretá-lo e logo caiu no gosto do público. Era uma figura muito do bem. Ainda tinha aquela magia da teatralidade dos personagens que ele encarnava para poder pedir dinheiro. Êta Mundo Bom! tinha um elenco muito interessante. A começar pelo Sérgio Guizé (Candinho), que é um ator extraordinário. O mesmo vale para a Eliane Giardini (Anastácia), que é fantástica. Tinha muita gente lá me apoiando. Era uma relacionamento excelente. Foi tudo muito bom, graças a Deus.
Você já comentou em mais de uma oportunidade que a rotina de gravação era puxada para interpretar o Pancrácio, que ainda teria o acréscimo do irmão gêmeo Pandolfo.
Depois que entrou o irmão gêmeo, eu tinha que fazer os dois ao mesmo tempo. Não era sempre, mas às vezes os dois se encontravam. Daí tinha de interpretar os dois personagens no mesmo dia, pois dependia de um efeito especial. De qualquer maneira, todo o trabalho foi muito divertido. Era uma novela muito leve. Eram personagens muito gostosos de fazer. Terminou tudo feliz.
No final de 2019, Greta chegou aos cinemas. você se entregou ao personagem em uma interpretação bastante elogiada. Como foi se conectar com esse texto?
Eu gosto muito de conviver com a equipe que vai fazer o papel comigo. A atuação é uma arte de conjunto. Você não vive sozinho em cena. Mesmo quando está fazendo um monólogo, você depende muito dos outros. Gosto de trabalhar assim, coletivamente. Em Greta, o diretor Armando Praça me visitou em casa e me explicou como era o projeto. Fiquei com uma impressão muito boa dele no primeiro encontro. Depois que li todo o roteiro, vi que era um papel muito bacana para o momento que eu vivia. Pronto, aceitei e fui. Cheguei lá e tive um período de ensaio com a equipe, que foi muito profundo. E o Armando é um diretor de muito bom gosto. Tive a coragem e a liberdade que ele me propiciou. Não tive nenhum problema para fazer as cenas de nudez, pois eram todas muito bem cuidadas e adequadamente iluminadas. Achei que seria bacana eu fazer um personagem mais velho, um drama. Era um momento que eu estava me recuperando de um problema na coluna, mas deu tudo certo. Nos organizamos de modo que não fosse muito puxado.
Como foi fazer as cenas de nudez e sexo?
Súper tranquilo. Era uma equipe muito respeitosa e profissional. Eu brinquei com o Armando que o máximo que ele estava fadado a fazer era enquadrar a minha barriga, pois estava muito grande (risos).
Greta é um filme LGBT+ sobre uma faixa etária que raramente é protagonista no cinema. É um retrato da solidão de uma pessoa com idade avançada. Como é seguir em atividade com mais de 70 anos?
Para quem gosta e tem vocação, é muito bom poder trabalhar com mais de 70 anos. Estou agora com 72, mas eu costumo contabilizar que estou no percurso dos 73, pois estou chegando lá. Quando eu completar 73, passo a contar que estou no percurso para os 74 (risos). Eu não acreditava que ia chegar nessa idade. Sequer achava que ia passar o milênio. Sempre imaginava quando era jovem como seria a passagem de milênio. Pensava: "Poxa, dever ser uma loucura isso". Mas foi uma decepção enorme, pois ninguém ao meu redor sabia quando começava exatamente o milênio, se era dia 31 ou 1º de janeiro. Me decepcionei com as festividades (risos). De qualquer maneira, não imaginava que ia chegar, mas passei e muito. Na minha infância, as pessoas morriam muito mais cedo.
em 2019, a Ancine cortou o apoio financeiro para a participação de Greta no Festival Internacional Queer Lisboa. A agência justificou que houve um corte de R$ 13 milhões nas despesas gerais. Haveria uma ajuda de custo de R$ 4,6 mil para a produção dos longas participarem do evento. Como você avaliou esse corte na época? Foi um boicote?
Foi um tipo de boicote. Foi um tipo de censura. No final, a produção do filme conseguiu uma ajuda participar do festival.
No ano passado, o governo Bolsonaro suspendeu um edital com séries LGBT+ para TVs públicas. Você teme que a censura atinja a produção audiovisual e artística no Brasil?
Claro, com esse governo que está aí tudo é possível. Hoje li um artigo do Ruy Castro dizendo que todo mundo esperava que o Bolsonaro fosse dar um golpe, mas que ele próprio é o golpe. Está sendo uma loucura isso na política. Muitos cargos ocupados por militares, que não são especializados. Uma coisa Moral e Cívica (disciplina escolar instituída durante a ditadura) demais. Se não houver reviravolta, nosso destino é terrível. É muito desagradável ver a violência que se forma contra negros e pobres. Muito desagradável para pessoas como eu, que gostam de discutir a democracia, que gostam de discutir ideias. Há um cerceamento e uma obscuridade que fomos no meter.
Na sua avaliação, a que se atribui essa obscuridade?
Isso é tudo uma camiseta dos líderes do governo. Por exemplo, o aborto. Uma menina capixaba de 10 anos foi chamada de assassina por interromper a gravidez em decorrência de um estupro. Olha onde nós estamos? Não é possível, a menina teve que entrar no porta-malas do carro no hospital para fazer uma coisa que é determinada por lei. Há um moralismo cego que rege essa obscuridade. Abrir o jornal todos os dias e deparar com histórias como essa é para quem tem muito estômago. Todo dia tem uma novidade desagradável nesse setor.
Talvez esse tipo de reação possa ter se intensificado com a pandemia. Como tem sido o período de pandemia para você?
Eu sou grupo de risco. Então, me embuti da ideia de não sair de casa para nada (Nanini vive no Rio de Janeiro). Só saio para ir a um médico ou outro, mas daí me encho de máscara (risos). Estou confinado há muitos meses. Ainda bem que tem bichos aqui em casa, tem alguma planta, o que dá alguma alegriazinha. Não tem outro jeito, tenho que ficar aqui dentro. As informações são tão desencontradas também, você fica sem saber o que fazer.
Como assim?
Ministério da Saúde não existe, praticamente. Nenhum ministério mais existe direito. Governo diz que não é bem assim, que tem que tomar cloroquina. Ou seja, isso tudo confunde o cidadão. É uma confusão danada. Algumas autoridades usam o bom senso. Daí vem uma contraofensiva do governo federal, com uma desmoralização de quem está falando o certo. Há um descrédito do governo com a Organização Mundial da Saúde, de todos os protocolos do mundo inteiro que está empenhado em resolver essa situação. Mas aqui no Brasil é salve-se quem puder. O cidadão fica completamente desorientado. Ele tem que decidir por ele mesmo e Deus que proteja.
Com tantas notícias negativas circulando, o que te traz otimismo? Ao que você recorre para aliviar a mente?
Olha, é difícil esse tempo. O que atenua bastante para mim é ver a natureza, ver as coisas mais significativas do ser humano.
vamos falar um pouco sobre A grande Família. Há uma geração que cresceu assistindo ao programa. Uma reflexão recorrente entre esse público, que é comum ser repetida nas redes sociais, diz o seguinte: "Estou virando o Lineu de A Grande Família"...
(Interrompe em risos) Nunca tinha ouvido falar! Incrível!
Até hoje há um culto muito grande ao seriado, especialmente na internet. Até hoje é mencionada com bastante carinho, com cenas sendo revisitadas em memes. A que você atribui esse sucesso longevo de A Grande Família?
É muito difícil você atribuir a um fator específico para o sucesso. O programa sempre teve muita simpatia do público. A Grande Família já era sucesso em sua primeira versão, na sua versão setentista (foi ao ar pela TV Globo entre 1972 e 1975). Quando retornou, voltou com muita força. Nós tivemos um trabalho de preparação muito grande. Fazíamos o programa sempre com muita seriedade. Só terminamos quando ninguém mais aguentava, quando já estava no limite. Eu era pai, virei avô. Teve passagem de tempo. Para continuar, eu teria que ficar com cento e tantos anos. Não dava, tinha que terminar. Mas até o último momento a gente se dedicou muito ao programa, tínhamos muito amor por ele. Evidentemente, recebia também muito carinho do público quando saíamos para algum lugar, o que até dava vontade de ficar mais tempo nesse trabalho. Fui muito feliz com A Grande Família. Durou o que tinha que durar. Terminou tudo de comum acordo. Pronto. Estamos seguindo.
Você já se sentiu parecido com o Lineu no seu cotidiano?
De alguma maneira, você busca na sua fonte os sentimentos para o personagem. Todo mundo que chegava perto de mim dizia: "Ah, meu pai é igual ao Lineu!". Isso acontecia porque era característica, mesmo. Lineu não era um personagem que fazia rir toda hora. Ele era uma personagem de centro e circunstância. Lineu tinha principalmente toda aquela característica de integridade, que é o que está faltando hoje no Brasil.
Há uma cena do Lineu que vez ou outra é resgatada nas redes sociais. é o episódio que ele come um biscoito de maconha e fica ouvindo Roundabout, do Yes. como foi construir esse capítulo?
Esse tema era uma coisa que nós queríamos falar no programa. Mas não foi fácil, já que a televisão aberta chega a muitos lares. Então, a TV tinha isso de não deixar acontecer imediatamente. Com o passar do tempo, a gente conseguiu realizar esse episódio. Foi um capítulo muito bom. Lineu come o biscoito inadvertidamente. Ele não sabe que está ficando louco. Começa a fazer coisas que nunca imaginou. Foi muito legal. Era preciso de uma concentração muito grande porque nesse tipo de humor você não pode querer fazer graça. Você tem que fazer com verdade. A graça vem da situação. Isso a gente levava muito a sério. Quem fazia a graça pelo próprio personagem era o Agostinho (Pedro Cardoso). Então, sempre levávamos esses climas que a gente encontrava às últimas consequências. No caso aí, a pessoa mais séria comeu o biscoito de maconha e ficou doidão. Foi uma cena muito bem aceita.
Um exercício de imaginação: como você acha que o Lineu estaria se comportando na pandemia?
Acho que seria muito engraçado. Tomaria todas as providências possíveis de desinfestação de tudo. Ele seria quase um bedel (chefe de disciplina em escolas) em casa. Lineu ia levar muito a sério a quarentena.
Quais são os seus próximos projetos?
Eu estava esperando o meu momento de trabalhar, aí veio essa pandemia. Os teatros fecharam, e a TV foi muito afetada. A novela para que eu estaria reservado, de autoria do Gilberto Braga e da Denise Bandeira, vai entrar sabe-se lá quando. Está na fila. Há muitas produções paradas. Quanto ao teatro, estou estudando com o Fernando Libonati, meu sócio, sobre o que fazer e como fazer. Só achar o que fazer já era difícil, agora é preciso pensar como se pode apresentar o trabalho. Não é nada certo ainda. Com certeza não será uma live.
O formato de live não te atrai? Não, eu não me sinto à vontade. Sou muito tímido. Não sou dado a isso. Gosto de ensaiar, de fazer personagens. Não vejo lives. Adoro ver o Marcelo Adnet, por exemplo. Morro de rir! Outro que adoro também é o Pedroca Monteiro.
Como você acompanhou as tensões entre o Marcelo Adnet e o secretário especial da cultura, Mario Frias (o humorista parodiou uma campanha da Secretaria de Comunicação da Presidência e Frias o criticou)?
Que tristeza. Que coisa mais cafona, puxa vida! Como é que pode isso, ele é um artista. Agora vão proibir os caricaturistas de trabalhar nos jornais porque produzem críticas em seus desenhos? Isso não é possível, não pode acontecer em uma democracia. A Secretaria Especial da Cultura virou um abacaxi. Secretaria de nada. Cultura de nada. Só para atrapalhar. O que o Mario Frias vai fazer? Por enquanto está fazendo figuração, o que está dando certo.
Você chegou a conhecer o Mario Frias? Não, não conheci.
Mas a ex-secretária Regina Duarte sim, certo? Já trabalhei com ela, mas, sei lá, há 40 anos.
Regina Duarte passou por poucas e boas enquanto esteve na secretaria. Ela foi bastante criticada por conta de uma entrevista em que minimizava a ditadura.
Aquilo foi um absurdo também! Que entrevista infeliz foi aquela! Regina foi descartada também, foi humilhada. Eu, hein! Ela era uma pessoa diferente da entrevista quando você a conheceu?
Olha, nunca tinha visto chegar a esse ponto. Mas ela era uma criatura mais conservadora, vamos dizer assim. Mas agora ela chegou a um ponto, dizer que não houve ditadura... Poxa, pelo amor de Deus, basta ler um pouco. Bom, que seja assim. Faça lá o que ela quiser.
WILLIAM MANSQUE
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