quinta-feira, 24 de setembro de 2020



24 DE SETEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Histórias de um carreteiro imortal 

O Noriega não esqueceu do carreteiro da Dona Tereza. O Noriega, você sabe quem é: Maurício Noriega, um dos maiores comentaristas de futebol do Brasil. Ele está sempre viajando pelo país em coberturas de jogos. Numa dessas, levei-o ao meu bar favorito nos anos 90, o Lilliput da Calçada da Fama, e, enquanto nos dirigíamos para lá, antecipei:

"Vais comer o melhor carreteiro da tua vida!"

Eu sabia do que estava falando. Dona Tereza, a cozinheira do Lilliput, não era uma cozinheira comum. Era como se a língua de fogo do Espírito Santo lhe tivesse lambido a testa, anunciando, com a voz de trovão do Arcanjo Miguel: "Receberás a luz de todas as bocas de fornos e fogões, de todas as panelas e caçarolas! Ide e cozinhai!"

E ela foi e cozinhou. Seus pratos faziam uivar os clientes do Lilliput. Guardo cá comigo o orgulho de ter batizado uma dessas iguarias, um lombinho de porco feito sob minha encomenda. O Atílio Romor, gerente do bar, mandou escrever no cardápio: "Lombinho à David Coimbra". Pode alguém almejar maior galardão? O problema é que os amigos invejosos mangavam: "Vamos comer o lombinho do David?"

Nós íamos ao Lilliput todas as noites. Todas. De segunda a segunda. Uma vez, fiz lá a festa de final de ano da Editoria de Esportes da Zero Hora. O chope estava liberado, cada conviva só teria de pagar pelo jantar, 17 reais por pessoa, mas os muquiranas da editoria até hoje reclamam do preço. Dezessete reais! Está certo que isso aconteceu em 1998, mas, puxa, era o carreteiro da Dona Tereza! E o chope cremoso e dourado servido em taças de cristal, luxo que só o Lilliput oferecia do Mampituba para baixo.

Bem.

Em meio à festa, nós realizamos o tradicional amigo-secreto da editoria. A amiga-secreta do Luiz Zini Pires era uma moça que chamávamos de "A Prodigalidade da Natureza". Por ser farta em tudo: boca voluptuosa, pernas rosadas e sólidas, como dois troncos de jequitibá. Isso fisicamente falando. Mas, para que não acusem a velha Editoria de Esportes de reificar as mulheres, acrescente-se que era também farta em espírito. Tinha uma inteligência áspera, um senso de humor fino e uma aragem blasé que deixava o interlocutor sempre na dúvida: "Será que ela está debochando?" Não raro, estava. Conhecia as fraquezas humanas, a Prodigalidade.

Pois o Zini, ao dar uma pista sobre quem era sua amiga, disse: "Ela é a mulher que mais recebe flores na Redação!" Ocorre que a Prodigalidade havia trazido o namorado para a festa, e o rapaz estranhou: "Mas eu nunca te mandei flores!"

Deu-se uma pequena crise conjugal, mas, no final, tudo acabou bem. A Prodigalidade só precisou de um par de argumentos para fazer o namorado se acalmar - como disse, ela conhecida as fraquezas humanas.

Era assim o Lilliput, que, tristemente, não existe mais. Os bares, como a juventude, são efêmeros. É um consolo termos histórias que nos permitem, de alguma maneira, vivê-los outra vez. O Noriega fez precisamente isso, dias atrás, quando o entrevistamos no Timeline, da Gaúcha, e ele falou do carreteiro da Dona Tereza. Passaram-se mais de 20 anos, e ele recordou do carreteiro, e, assim, recordei também. Foi como se provasse de novo o gosto da comida quente e sentisse de novo o primeiro gole de chope gelado descendo pela minha garganta. Pena que não existe mais o Lilliput e nem sei por onde anda a Dona Tereza. Pena. Mas ainda posso reunir os parceiros, como o Noriega, ainda podemos beber nossos chopes e rir juntos e brindar às noites amenas e à amizade, que são coisas realmente importantes da vida.

DAVID COIMBRA

Nenhum comentário: