18 de agosto de 2016 | N° 18611
L.F. VERISSIMO
Por baixo do camisolão
Santo Agostinho escreveu que, entre as tentações, uma das mais perigosas é a que ele chamou de “doença da curiosidade”. A curiosidade leva o ser humano a tentar descobrir segredos que estão além da sua compreensão e que em nada o beneficiarão. Foi, com outras palavras, o conselho que Deus deu a Adão e Eva no Paraíso, advertindo-os a não comer o fruto da árvore do saber para não contrair a doença.
Mas Eva não se aguentou e comeu o fruto proibido. Resultado: perdemos o paraíso da ignorância satisfeita e estamos, desde então, tentando descobrir que diabo de lugar é este em que nos meteram, esta bola girando entre outras bolas num espaço imensurável, sem manual de instruções. Santo Agostinho e outros tentaram nos convencer a aceitar os limites da fé como os limites do conhecimento. Tentar compreender mais longe só nos traria perplexidade e angústia e nenhum benefício.
A doença da curiosidade levou os descendentes de Adão e Eva a tentar decifrar e recriar a origem de tudo. É um processo em constante evolução – acabam de descobrir, por exemplo, que os buracos negros, que já ultrapassavam a nossa compreensão, não são exatamente como diziam. A física quântica está constantemente driblando a especulação científica e abalando certezas, o que não diminui a curiosidade.
A rebeldia vai mais longe: agora, pretendem espiar por baixo do camisolão de Deus. Um rabino (um rabino!) chamado Mark Sameth escreveu um artigo para o New York Times com o instigante título “Deus é transgênico?”. Estudioso da Bíblia hebraica, Sameth escreve que o tetragrama YHWH, o nome secreto de Deus, se lido da direita para a esquerda, como provavelmente faziam os sacerdotes judaicos, seria HU-HI, ou ELE/ELA. Se Sameth tem razão, as três religiões monoteístas do mundo com origem na tradição judaica adoram uma deidade bigenérica.
Santo Agostinho pregava uma interpretação rígida das escrituras, mas deixava uma porta aberta para fugir das suas incongruências. O que fosse provável era a verdade de Deus, o que não fosse era alegoria. Talvez um Deus de dois gêneros da tese de rabino Sameth seja uma alegoria, significando um deus para todos.
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