quarta-feira, 10 de agosto de 2016



10 de agosto de 2016 | N° 18604
OLHAR GLOBAL | Luiz Antônio Araujo

Presente do inferno

Quando derrotou o levante militar contra seu governo, em 15 de julho, o presidente Recep Tayyip Erdogan disse: “Essa tentativa de golpe foi um presente do céu”. Referia-se à oportunidade de utilizar o repúdio popular ao golpe para recompor politicamente sua base de apoio, abalada pela degringolada da economia, pela guerra civil contra os curdos e pelo conflito na Síria. Mas não foi apenas Erdogan que teve motivos para bendizer a sorte em julho. Não escapou aos observadores a rapidez com que Vladimir Putin telefonou para o colega, ainda em Istambul, a fim de expressar a solidariedade do Estado russo.

Putin e Erdogan são aliados improváveis. Na Síria, estão em campos opostos – o primeiro servindo de guarda-costas do regime de Bashar al-Assad, e o segundo, sustentando militar, política e financeiramente distintos grupos armados sunitas. Nas próximas semanas, a batalha final por Aleppo, a segunda maior cidade do país, situada a dezenas de quilômetros da fronteira com a Turquia, deve colocar à prova a retomada das relações.

Em termos globais, a Turquia permanece nos marcos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), condição que lhe permitiu atravessar a Guerra Fria com uma política definida como de “tensão zero” com os vizinhos. A Rússia, por sua vez, é hoje a principal fonte de preocupação para a Otan, especialmente depois da anexação da Península da Crimeia, em 2014, e da escalada da guerra na Ucrânia. Os ex-Estados soviéticos da Lituânia, da Letônia e da Estônia, secundados pela Polônia, ex-integrante do Pacto de Varsóvia, têm denunciado continuamente o risco de uma improvável agressão russa.

Mas foi no Oriente Médio que a presença militar russa teve o mais profundo impacto nos últimos anos. Com duas bases militares na Síria – uma delas, a de Latakia, a única no Mediterrâneo –, o país contribuiu para virar o jogo em favor de Al-Assad no final do ano passado. O jato russo Sukhoi Su-24 abatido por caças turcos nas proximidades da fronteira, em novembro, deixou Moscou e Ankara à beira da ruptura. Na época, ninguém imaginava que a sorte daria uma segunda chance às relações turco-russas. Agora, Putin e Erdogan ensaiam um recomeço. Para muitos, essa reconciliação é um presente do inferno.

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