domingo, 7 de agosto de 2016


06 de agosto de 2016 | N° 18601
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

QUANDO É DIFÍCIL SER ORIGINAL

Se todos sabemos que é inevitável, por que ela nunca parece natural? Se reconhecemos a dolorosa proximidade, por que a dissimulação? Por que os nossos amados não aceitam conversar sobre despedida, mesmo quando ela se anuncia tão evidente? E qual a razão para que nossos conhecidos, ao saberem da nossa desventura, se comportarem como se fôssemos invisíveis?

Na primeira consulta do Alceu, o Cândido veio junto. Eram tão parecidos que os supus irmãos, mas eram só colegas de trabalho, desses que, de tão próximos, se fazem parentes. Mesmo emprego há 27 anos, mesmos time e paixão política, eram siameses por circunstância e afeto. Ao questionar o Alceu se ele fumava, o Cândido resumiu: “Nós acendemos o cigarro um do outro”. Quando tossiram juntos, evitei comentar que até nisso se copiavam. Mas aí, aparentemente, terminavam as semelhanças. O Alceu era mimado e carente e tinha uma família que o amparava, e o Cândido, um solitário, mais por iniciativa que por desamor.

Usei o vínculo afetivo dos dois para fazer chegar à família a gravidade da situação do Alceu, portador de um tumor avançado, com sintomas negligenciados há meses. Impressionou-me desde o início a curiosidade do Cândido em saber detalhes da doença do amigo, tempo de evolução, limitações e desfecho. Apesar do carinho da família, ninguém rivalizava com o amigo em proteção e desvelo. Quando se aproximou o fim, toda a família no quarto, um dos filhos queridos perguntou ao pai o que sentia. Com os olhos semicerrados, ele respondeu: “De vez em quando, um pouco de frio, mais nada”. Foi então que o netinho de seis anos disse: “Se quiser, eu durmo contigo, vô. A mãe disse que eu sou muito quentinho!” Houve uma debandada geral. Ninguém resistiu à contundência de afeto de que só as crianças são capazes.

Encontrei o Cândido aos prantos no jardim. Ficamos abraçados um tempo e ele lamentou: “Vai ser uma grande pena não tê-lo por perto quando chegar a hora da minha morte”. Tentei interromper o pranto dizendo que não valia a pena antecipar o sofrimento, que nem temos ideia do quando virá e que até por instinto protetor, é razoável que nos comportemos como se soubéssemos que poderia nunca vir. Ele, então, surpreendeu: “Acontece que estou numa situação idêntica. Só não consultei contigo porque não queria desviar o foco do meu amigo, que é uma pessoa muito mais frágil. Tentei conversar com meus filhos, mas eles são muito ocupados. 

Mas não estou reclamando, sempre me virei sozinho. Só queria contar com o doutor na hora de comprar esses remédios que precisam de receita. Por favor, não me considere um egoísta, mas agora mesmo estava aqui chorando de pena de mim, porque a única pessoa de quem eu realmente sentirei falta vai morrer antes de mim!”. Impressionante que duas pessoas tão identificadas em gostos e sentimentos, tão irmanadas em exigências e afetos, tenham comportamentos tão divergentes na única etapa desta passagem que não podemos evitar. Lembrei desta dupla ao assistir a Truman, o último e maravilhoso filme de Ricardo Darín em que, numa certa altura, ele diz: “Cada um morre do seu jeito”. Uma ironia que o único momento da vida em que somos obrigados a ser originais é justo quando ela termina.

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