25 de agosto de 2016 | N° 18617
GENTE
Vida que se renova
MECÂNICO ATINGIDO POR TREM DE POUSO no Salgado Filho em julho morreu sem saber que seria pai. Virgínia Cunha Betiatto descobriu a gravidez 21 dias após acidente que matou o seu marido
Sufocada por lembranças, Virgínia Cunha Betiatto reluta em assimilar a morte do marido, atingido pelo trem de pouso de um avião da Latam Airlines na madrugada de 11 de julho, em Porto Alegre.
O mecânico de aeronaves Adriano Luiz Schuch, 34 anos, estava no pátio do aeroporto Salgado Filho quando o veículo em que trabalhava foi movimentado e passou sobre sua perna esquerda e parte do tórax. Por 21 dias, Virgínia permaneceu em tristeza profunda, sentimento que foi atenuado com a confirmação, 24 dias atrás, de que carregava um pedaço de Adriano consigo: a bancária de 28 anos está grávida. O filho foi planejado por ambos para vir ainda neste ano, mas a notícia da gravidez o mecânico não teve tempo de receber.
A morte do marido e a gestação, que completou 10 semanas segunda-feira, fazem com que Virgínia transite repetidamente entre o sofrimento e a felicidade. Ao falar sobre Adriano e seu filho, cujo sexo ainda não sabe, a mesma lágrima de dor e saudade que escorre por seu rosto transforma-se, no instante seguinte, em choro de alegria ao lembrar do bebê.
– No primeiro momento é um susto, mas, depois, é um conforto, porque uma parte dele ficou aqui com a gente – explica Virgínia.
Para ela, a mudança pela qual seu corpo está passando representa a continuidade dos laços matrimoniais firmados diante do altar há três anos e nove meses. Com uma única correção nas falas dos noivos: “na alegria e na tristeza, além do fim das nossas vidas”.
– Tem horas que me conforta saber que va ter um bebê, uma criança. Saber que, de certa forma, a nossa história vai continuar – comenta Virgínia, exibindo um sorriso.
Passado mais de um mês do acidente, ainda é difícil vê-la falar de Adriano sem que a voz embargue. Após uma respiração pausada, sucedida de um riso tímido, que contrasta com a vermelhidão dos olhos, ela descreve o companheiro, a quem começou a namorar em 2004, como o parceiro de todas as horas:
– Nunca falava não, estava sempre disposto. Se eu tinha que fazer alguma coisa, ele ia, participava, estava sempre junto.
Moradores de Cachoeirinha, na Região Metropolitana, Adriano e Virgínia haviam se mudado para a casa nova no início de abril. Já tinham, até, reservado um quarto para o filho, que sonhavam em ter juntos ainda neste ano.
– Cada hora que eu lembro é um susto, porque parece que não aconteceu. Ele estava bem, sabe? Vi ele sair de casa. Estava tudo bem – lamenta Virgínia.
Chovia forte na madrugada de 11 de julho, quando três funcionários da Latam, entre eles Adriano, trabalhavam na manutenção de uma aeronave estacionada no Salgado Filho. A vítima, próxima ao trem de pouso, acabou esmagada pelo veículo por volta das 3h30min. Socorrida ao Hospital Cristo Redentor, na Capital, chegou a ter a perna amputada antes de morrer, 10 horas após o acidente.
Conforme apuração do delegado Cleber Ferreira, devido ao mau tempo, somente Adriano e o colega que estava na cabine do avião tinham comunicação via rádio portátil. O motorista do pushback (trator de reboque) mantinha apenas contato visual com a vítima.
– Como estava chovendo muito, a comunicação visual era péssima e ele (colega de Adriano) entendeu que era para movimentar a aeronave – disse Ferreira.
“ATÉ HOJE, NINGUÉM VEIO FALAR COM A GENTE”
O inquérito, que foi remetido à Justiça há cerca de 15 dias e está sob análise, indicia o operador do pushback por homicídio culposo (sem intenção de matar), por imperícia e negligência. Para o delegado, ele deveria estar atento a quais equipamentos eram necessários naquela madrugada, levando em conta todas as circunstâncias – inclusive as condições climáticas.
– No meu entendimento, houve falha do operador, por isso os donos da empresa não estão sendo indiciados – explica Ferreira.
Abalada, Virgínia tem feito acompanhamento psiquiátrico. A casa em que morava com o marido, em Cachoeirinha, virou local de visita, já que o seu novo endereço passou a ser o mesmo da mãe e do padrasto.
– Até vou lá (na casa do casal), mas ficar sozinha não dá – conta Virgínia, ao lembrar que a Latam nomeou uma assistente social para prestar apoio à família, mas o serviço durou somente até o sepultamento de Adriano, no dia seguinte.
Mãe de Virgínia, Núbia Susana Santos da Cunha, 49 anos, ressalta que a empresa aérea divulgou nota colocando-se à disposição para qualquer eventualidade, o que não vem sendo cumprido, segundo ela.
– A minha filha precisa de uma assistência psiquiátrica especializada, alguém que venha prestar socorro, que dê uma continuidade. Porque, para nós, com a morte do Adriano é que começou todo o processo. Está começando agora um outro tipo de vida. Mas o tempo está passando, e as pessoas, esquecendo. Até hoje, ninguém veio falar com a gente – reclama.
Em nota, a Latam se ateve a dizer que “está prestando a assistência à família de seu funcionário”, mas não respondeu quais são os serviços oferecidos. Também explicou que “está colaborando com as autoridades responsáveis pelo caso” e “que segue os mais elevados padrões de segurança do mundo”.
marcelo.kervalt@zerohora.com.br
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