Somos todos vira-latas
Tem alguns equivocados aí que acham que porque tem umas velhas certidões dos parentes, que muitas vezes casaram entre si, e porque tem umas propriedades e uns diplomas, seriam portadores do tal e enganoso pedigree. Eles se acham uns cachorros de raça, desses que vêm com certificado, dizendo que os antepassados eram do mesmo tipo que ele. Ledo engano. No início de tudo, a cachorrada e os humanos eram os mesmos e foram se misturando. Na Inglaterra, Alemanha e Itália, dizem, foi onde o sangue mais se misturou. Hoje é tudo misturado, no fundo, no fundo, cão, gato, cachorro, humano, todos têm uma raça só, com diferenças apenas culturais.
Quando perdemos para o Uruguai na Copa de 1950, em pleno Maraca, e pintou aquele baixo-astral federal, Nelson Rodrigues escreveu que tínhamos complexo de vira-lata, que nos sentíamos inferiores, selvagens, gente de segunda ou terceira, comparados com os gringos de outras paragens, mais "desenvolvidos", segundo os critérios deles. Depois que ganhamos um caminhão de copas, de vira-latas passamos a pastores, e aí, nos últimos tempos, melhor não falar muito em nosso futebol, que está parecendo o ouro que os antigos colonizadores nos levavam. Hoje, o ouro é representado pelos milhares de jovens jogadores que vão para o estrangeiro, levados pelo dinheiro e pelo poder que o futebol tem, principalmente na Europa.
Mas e qual é, no fundo, o problema em ser vira-lata, rafeiro (Portugal) "underdog" ou SRD ("sem raça definida")? Qual é o animal ou ser humano que tem raça bem definida? Vira-lata é dócil, companheiro vigilante e inteligente, afetuoso. Ainda por cima, vira-latas vivem, em geral, bem mais que os outros cães, adoecem menos e não necessitam de tantos cuidados veterinários. Viva o vira-lata! O vira-lata, de mais a mais, gasta menos com tosa e causa menos problemas com os parentes, amigos, vizinhos e desconhecidos.
Nessa Olimpíada, alguns podem até se ser sentir cães de raça superiores, com medalhas e honrarias, fama, orgulho, dinheiro no bolso e, muitas vezes, cabeças entupidas de neuras, olhos cegos de vaidade e peitos empombados explodindo de orgulho. Outros talvez se sintam vira-latas, procurando restos e sobras, catando oitavos e nonos lugares, achando que não têm o tal pedigree e os recursos que os pretensos raçudos têm.
Ao fim e ao cabo, ganhando ou perdendo, todos descendem dos mesmos, são todos da raça humana, e as circunstâncias de uns subirem ao pódio e outros não são circunstanciais e coisas criadas pelos humanos, que gostam de se sentir melhores, mais bonitos, espertos, inteligentes, ricos e vencedores que seus vizinhos. Manter o espírito olímpico, achar que o que importa é competir e tomar cuidado para que o ouro não acabe no penhor da Caixa ou derretido pela necessidade é o que os todos os democráticos vira-latas sabem, ou precisam saber.
Assim, vamos respeitar e saudar os vira-latas, que têm muitos méritos e merecem consideração, por carregarem o DNA de todo mundo, com alegria, inteligência e sem aquela pose e aquela empáfia dos metidos a raçudos.
A propósito...
Há muito que cientistas e estudiosos decretaram que não existem raças humanas, e sim apenas uma raça humana, que somos todos descendentes dos mesmos antepassados. Diferenças existem no plano cultural e não na biologia. O vira-lata é isso. A soma, a democracia, o todo. A raça. Raça não definida? Não, todas as raças. Cães servem para caça, guarda, pastoreio, puxar trenós, combater outros animais, se apresentar em peças de publicidade, circo, cinema, teatro e onde for. Vira-latas servem para mostrar que somos todos vira-latas, da mesma raça, alguns adotados, morando e comendo bem dentro das casas e outros ainda nas ruas, procurando restos e sobras. Todos somos vira-latas. Quem sabe um dia com condições iguais.
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