segunda-feira, 15 de agosto de 2016



15 de agosto de 2016 | N° 18608 
DAVID COIMBRA

A vida não é só feita de prazeres inenarráveis

Certo dia, num jornal em que trabalhava, abri a gaveta de uma das mesas da Redação e encontrei-a vazia, com exceção de uma frase escrita na carne da madeira:

“O redator sofre”.

Aquilo me enterneceu. Fiquei imaginando o desespero do colega ao tentar encontrar o lide perfeito, suando com o esforço, intoxicando-se de cafeína, até que, in extremis, abre a gaveta e decide imortalizar sua dor. Aí ele toma da Bic companheira, abre a gaveta num repelão e rabisca com a gana dos injustiçados: “O redator sofre”.

E é assim. A você que acha que o trabalho do jornalista é só glamour, fama, viagens, dinheiro, prazeres inenarráveis e mulheres estonteantes em minissaias sumárias, a você que acha isso, garanto: há sofrimento, também.

Pegue um dia comum de uma cobertura incomum, como é a de uma Olimpíada. Sábado passado, por exemplo. Fazia sol, no Rio de Janeiro. Disseram-me alguns voluntários que essa circunstância climática fez com que muitos de seus colegas falhassem ao serviço, optando por deixar dourar a pele em frente ao oceano.

Talvez tenha sido uma decisão sensata, se você levar em conta a saúde mental e física desses voluntários, mas, para nós, repórteres e redatores, para nós, nem tanto. Havia menos pessoas para cuidar dos acessos às arenas e menos motoristas para nos conduzir de uma sede a outra. Logo: havia mais filas, mais espera, mais dor.

Naquele dia, concluídos alguns afazeres, resolvi ver o voo de Bolt no Engenhão, que fica longe do Parque Olímpico. Era preciso tomar dois shuttles. Saí com boa antecipação, mas não contava com o atraso do ônibus. Uma hora, uma hora e vinte, nada... Optei por caminhar meia dúzia de quadras a fim de tomar outro. No caminho, veio um ônibus oficial. Pus-me diante dele, acenando e torcendo para que o motorista não pensasse que era assalto e tocasse em cima de mim. Ele parou. Perguntei:

– Para onde vai esse ônibus?

O motorista pensou um pouco. Respondeu enigmaticamente:

– É a linha MTM vezes BAC5.

Putz.

– Mas para onde vai?

Ele coçou a cabeça:

– Não sei. Sou novo aqui. Vou pra onde me mandaram ir.

Suspirei e entrei. Enquanto isso, o Piangers e o Diogo Olivier, no Engenhão, me avisavam quanto faltava para o Bolt correr. Ainda havia tempo.

Cheguei a uma sede olímpica que não conhecia. Tinha bastante gente lá. Perguntei para um funcionário:

– O que é isso aí?

Ele fez muxoxo.

– Um monte de ingleish...

Deixei assim. Tinha pressa. Entrei no segundo ônibus, que me levaria ao terceiro para chegar ao Engenhão. O Piangers me atualizava: “Falta uma hora”.

O ônibus demorou a sair. Quando saiu, foi a 200 por hora pela pista olímpica.

Entrei no outro ônibus, enquanto o Diogo atualizava: “Faltam 40 minutos”.

O motorista era carioca, zuniu até o Engenhão em meia hora, mas a rua de acesso ao estádio estava congestionada. O Diogo e o Piangers avisavam: “Dez minutos”. O motorista, vendo minha aflição, sugeriu:

– Quer descer aqui e ir a pé?

Topei. Entrei correndo no estádio. No celular, o aviso: “Faltam oito minutos”. Já ia passando o portão e um guarda me parou:

– A imprensa é lá do outro lado, no Portão 4.

Por quinhentos bolinhos de bacalhau e mil chopes cremosos! Saí na famosa desabalada pela rua que contorna o estádio. “Faltam cinco minutos!” O Engenho de Dentro é uma mistura da Azenha com a Assis Brasil, muito familiar para quem é da zona norte de Porto Alegre. Havia uma multidão nas calçadas e eu ia driblando todo mundo feito uma Marta, enquanto ouvia o rumor da torcida lá dentro. Será que o Bolt já entrou? O Diogo e o Piangers alertavam: “Três minutos!”

Alcancei o Portão 4, enfim, passei na revista e me fui e me fui e me fui. “Dois minutos!” Investi por outro grande portão. Estava debaixo da arquibancada. “Um minuto!” Ouvi a torcida urrando. Bolt devia ter pisado na pista. Olhei para os lados.

Para onde devia ir? Então, cruzou por mim um cara de roupa colante e sapatilha. Um atleta! E ali adiante vinham uns soldados carregando com solenidade uma bandeira dobrada. E outro atleta, mais à frente, conversava com um sujeito que devia ser seu técnico. Eu estava no vestiário dos corredores! Zanzei um pouco por ali, observando tudo, até que vi que as pessoas me olhavam. Eu, todo suado, bem poderia ter corrido os cem metros minutos atrás, mas não de jeans e mochila com laptop nas costas... Saí dali, antes que me expulsassem. Não vi o Bolt.

Encontrei o Diogo e o Piangers, mais o Anderson Fetter, na calçada. Comemos uma feijoadinha na “Pensão Nosso Lar”, no Engenho de Dentro mesmo. Para a final, decidi me deslocar com umas cinco horas de antecedência.

Foi um longo dia. Para o Diogo e o Leonardo Oliveira, estendeu-se até as 3h da madrugada.

Eles tinham fome, e não existia um só restaurante ou bar aberto, com exceção de um McDonald’s. Só que era drive thru, atendia apenas motoristas. O Leo e o Diogo tiveram de entrar na fila de carros, caminhando como se estivessem rodando. Quando foram fazer o pedido, o atendente gozou:

– Não vão esquecer de abrir a janelinha.

O Leo, contando a história depois, respirou fundo:

– Fomos humilhados no McDonald’s.

O repórter sofre.

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