02 de agosto de 2016 | N° 18597
DAVID COIMBRA
O destino dos leões
Estávamos assim: a leoa má, a leoa que havia perdido um olho na luta contra a nossa família de leões, arrastava-se pela savana em direção aos filhotinhos da leoa boa, que havia saído para a caçada. Os dois pequenos quedavam-se indefesos, nem sequer mexiam as caudas, apenas observavam, paralisados, enquanto a morte se aproximava.
Do outro lado, já perto da manada de búfalos, a leoa-mãe de repente parou de avançar e esticou o pescoço. Farejou o ar. Olhou para trás, desconfiada. Mas não viu nada. Seguiu em frente.
A leoa má ganhou mais alguns metros. Os filhotes, de tão aterrorizados, não conseguiam nem miar. A leoa-mãe, como que alertada pelo instinto maternal, parou de novo e de novo olhou para trás. Mas de novo não havia nada para ver, e ela voltou a se concentrar na caçada.
– Aaaaaah! – gritei, encolhendo-me no sofá.
A leoa má encontrava-se agora a poucos passos, bastava um sprint de Usain Bolt e tudo estaria acabado. Era o fim. O fim!
Só que aí, feito a Sétima Cavalaria, surgiu a leoa boa, correndo e rosnando, levantando poeira do chão, pulando sobre a agressora e a submetendo. Aplaudi. Justiça, enfim. Justiça!
As coisas começaram a melhorar para a família. O filme da National Geographic, que, se você não sabe, eu assistia a tudo isso em um filme da National Geographic, pois o filme mostrou a leoa divertindo-se com seus filhotes, brincando, lambendo-os, cuidando deles, como deve cuidar uma boa mãe. Para arrematar, ela conseguiu caçar um búfalo, valendo-se da tática surpreendente de atacá-lo dentro do seu meio: a água.
Eu agora sorria diante da TV. Havia simpatizado com aquele leãozinho e o imaginei grande e forte, tanto quanto o pai, que morreu defendendo-o. Imaginei sua irmã garbosa, como a princesa que de fato era. E a mãe, já entrada em anos, orgulhosa de sua linhagem. Imaginei-os, os três, andando pela África e exercendo seu reinado, que leões devem sempre ser reis.
Fiquei tão tranquilo, que decidi ir à cozinha a fim de fritar um aipinzinho na manteiga e misturá-lo com a carne do churrasco do meio-dia, bem picadinha, porque, afinal, não são só os leões que sentem fome. Ao me erguer do sofá, vi que malditas hienas atacaram a mãe leoa para lhe roubar a carcaça do búfalo. Aquilo me causou certa apreensão, mas não muita, porque a leoa já havia se alimentado, o que significava que poderia produzir leite para dar aos filhotes. Ela abandonou a carcaça ao bando de hienas gargalhantes e se foi para encontrar seus dois gatinhos.
Também me fui para a cozinha.
Comecei a fritar o aipim, com o ouvido atento à TV. Já tinha preparado a carne e a despejara na panela, quando ouvi um som preocupante vindo da sala. Vindo da África, na verdade: era, inequivocamente, o ruído horrendo do estouro da manada de búfalos.
– Cristo! – gritei, sem largar a colher de pau. – Cristo!
Algo de muito ruim estava acontecendo. Desliguei o fogo e corri para a sala. A cena era a pior possível: o leãozinho de quem tanto gostava estava morto e a filhota a mãe encontrou arrastando as patas traseiras: o ataque dos búfalos quebrara-lhe a coluna. Paralisado, de pé, em frente à TV, o pano de prato na mão, vi a mãe tentando mover a filha, carregando-a pela boca e finalmente desistindo.
A leoazinha miava, impotente e cheia de dor. A mãe afastou-se alguns passos e sentou-se sobre as patas traseiras. Fechou os olhos e assim os manteve por algum tempo. A filha miou de novo. A mãe não olhou para trás. Ergueu-se. E caminhou, devagar e penosamente, para longe, sabendo que não havia mais como salvar sua leoazinha.
Eu, vendo aquilo, gemi. Pensei que o mundo, realmente, realmente, mas realmente é injusto. E voltei para a cozinha de cabeça baixa, murmurando comigo mesmo:
– Agora entendo as redes sociais.
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