quarta-feira, 3 de agosto de 2016


03 de agosto de 2016 | N° 18598 
PEDRO GONZAGA

INVERNO PORTENHO

Enquanto escrevo, chove em Buenos Aires. Em breve, será hora de voltar ao Brasil. Anos atrás, fiz as pazes com Porto Alegre ao me dar conta de que era, entre nossas capitais, a mais próxima daqui.

Quando novo quis morar em Buenos Aires, uma daquelas coisas ansiadas à maneira juvenil, de forma mais fantasiosa do que prática, porque quem quer mesmo ousa e vem, como vieram o meu ex-aluno e sua namorada, ele para estudar Medicina, ela Psicologia, ainda que o plano dos dois, confrontado com a realidade, tenha precisado de ajustes. 

Se eu tivesse que eleger uma característica humana a ser salva para uma espécie principiante, seria, por certo, essa capacidade de nos reajustarmos ao mundo. Notem o quão desumanos se tornam aqueles que não o fazem, com seus planos a despeito dos fatos, os ditadores das vidas públicas e privadas.

Mas como eu dizia, nunca vim em definitivo, mas aqui estive e estou, revendo os lugares amados, os pontos de referência de quem sou, como diria Álvaro de Campos: as livrarias Eterna Cadencia e El Ateneo; as ruas secundárias de Palermo, com seu casario baixo e seus plátanos; as ricas ruas da Recoleta e seu desmesurado cemitério; a loja de sabonetes Sabater, na Gurruchaga; uma parrilla rústica em San Telmo; um show de jazz na Notorious, que fica na Callao e que sempre me traz à mente Balada para un loco, do Piazzolla, com a letra de Horacio Ferrer entoada por Amelita Baltar, no ves que va la luna rodando por Callao. 

E quando enfim chega o momento do retorno, quando se acabaram todas as pratas, carcomidas pela última crise econômica, levo comigo esta alegria que sobreviverá aos dias rotineiros, motor imaterial das próximas viagens, pois são nessas ocasiões que percebemos o renovar de nossos sentimentos, porque voltar a um lugar conhecido é como voltar a um grande livro, uma chance de ver como mudamos e como se expandiu o campo da beleza do que antes julgávamos conhecer.

E se isso acontece junto a amigos brasileiros e buenairenses, se isso acontece ao lado do amor que trago comigo, e se posso contar com a compreensão (melhor, compaixão) de quem me lê, termino bem essa crônica, enquanto chove em Buenos Aires.

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